Ao longo dos últimos meses temos ouvido, não raras vezes, o quanto o mundo mudou.
Ousamos experimentar novos níveis de ansiedade propalados pela guerra na Ucrânia,
a fome agravada em África, a inflação galopante na América Latina (que se alastra no
mundo sem ‘vacina’ à vista) ou a desafiante resistência de uma pequena ilha no Mar
do Sul da China. Mas o que resta da mudança quando a novidade cessa, o mundo para
e o realismo se impõe? Por que caminhos navegam as nossas sociedades?
Paremos então o relógio – por breves minutos –, desliguemo-nos do imediatismo, e
falemos sobre o estado dos Estados. E olhemos para a liberdade.
Os estudos dos últimos anos da associação Freedom House, incluídos os anos de
pandemia até 2021, trazem-nos dados tão reveladores quanto preocupantes.
Nunca desde a década de 70 o mundo assistiu a tantos retrocessos democráticos como
os que hoje, impavidamente, tolera.
Os dados são claros: não há paralelismo para a quantidade de países que, nos últimos
3 anos, regrediram na qualidade da sua democracia por oposição ao número de
Estados que passaram a ser classificados como democracias com falhas, regimes
híbridos ou autocracias. O cenário é, naturalmente, dependente de fatores locais e
regionais, mas espelha uma macroestatística que nos obriga a refletir sobre os nossos
falhanços.
Se, por um lado, as causas deste défice variam consoante a latitude – na Nicarágua,
onde Daniel Ortega mandou prender todos os opositores políticos por suposta
cooperação contra a estabilidade nacional; nas Filipinas, onde desde o Presidente
Duterte à sua filha (recentemente eleita Vice Presidente) a luta contra o narcotráfico
justifica todos os atropelos aos Direitos Humanos; na Hungria ou na Sérvia, onde a
necessidade de continuação de um ciclo de recuperação económica serve o
ressurgimento de movimentos identitários; ou até nos Estados Unidos, onde a
defraudada expetativa eleitoral justifica o ataque ao mais basilar direito democrático
(o do voto) – por outro, os veículos são quase sempre os mesmos: os da
desinformação e da influência externa.
O primeiro, cada vez mais sofisticado e de massas, é indissociável do segundo, cada
vez mais poderoso e abundante. Da criação de algoritmos capazes de contornar os
mecanismos de defesa das redes sociais à precarização do jornalismo, aliados ao
financiamento ilícito de partidos e de atores políticos que pretendem desmantelar os
Estados recorrendo à mobilização popular a partir de premissas simples e falaciosas, a
luta contra a democracia está em marcha – e nem sempre visível a olho nu.
E encontrou, nos últimos anos, a mesma receita de sucesso de todos os períodos que
antecederam a maioria das revoluções: a da política de alto risco.
Hoje, em toda e qualquer discussão, inclusive nas mais maduras democracias
ocidentais (veja-se o caso de França ou dos E.U.A), os eleitores veem-se confrontados
com uma polarização e uma tensão política tão grande – e tantas vezes artificial pela
invenção de narrativas e casos (lembremo-nos da informação e contrainformação
durante o pico da pandemia) – que o seu voto lhes parece a decisão mais importante
desde a criação das próprias nações. É esse efeito, promovido pelas forças
autocráticas, muitas vezes bem distantes dos seus próprios países, que tem gerado a
desintegração dos ‘centros’ políticos e impossibilitado o diálogo: porque entre dois
pontos tão distantes, semelhantes ao fosso entre o bem e o mal, todos temos a
tentação para rejeitar a tese maligna em função da visão benévola da nossa própria
teoria.
É óbvio que, bem mais fácil, é culpar os partidos clássicos pelas falhas recentes das
democracias. Muitas vezes é, até, verdade e casos demonstrativos da utilização
indevida do poder público não faltarão por todo o mundo. Noutras, podem ainda ser
responsabilizados pela falta de identidade do seu discurso e pela consequente
confusão dos eleitorados, criando espaços e vácuos para novos e perigosos
protagonistas. Mas a verdade é que as democracias batalham hoje contra desafios
enormes onde todos partilhamos culpa – no alheamento da vida pública e no desdém
da atividade política. E é nessa praia de indiferença coletiva que a desinformação
navega.
Madeleine Albright ousava dizer que ‘enquanto que a longo prazo a democracia é o
sistema de governo mais estável já experimentado, é também o mais frágil a curto
prazo’.
A possibilidade de o ser depende, sobretudo, da forma como cada um encara a sua
responsabilidade e será posta em causa, todos os dias, nos tempos difíceis e
tentadores que se avizinham.
Resta saber quão resilientes são os indivíduos e as sociedades modernas, na falta de
abundância, para defender a liberdade e a democracia. Porque a liberdade não se
compra, nem se vende: conquista-se e perde-se.
Autor: Bruno Gonçalves