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Democracia «à la carte»

Com o afastar do Estado Novo podíamos pensar que a democracia (e já lá vão 45 anos) amadurecera, o Povo e seus representantes se entronizara com os seus termos e princípios. Ora, vemos ondas preocupantes de radicalismos ou pequenas ditaduras de pensamento. A democracia não é um quintal de alguns, não é uma construção só válida quando afaga as nossas ideias ou as que caucionamos; é uma convergência livre enquadrada em pilares como a liberdade, igualdade, representatividade, responsabilidade e Estado de Direito. É de rejeitar que o que uns pensam se deve, só por si, impor aos outros. Todos importam, ainda que hajam escolhas de caminhos em que a maioria, dentro daqueles alicerces e sem ostracismo das minorias, se pronuncia e aceita. Estas pedras no sapato democrático muitas vezes surgem no contexto dos partidos, de ideologias ou de líderes em que os demais – acriticamente – tomam o que daí advém como verdades absolutas, inquestionáveis. Estes laivos de anti-democracia surgem até quando alguns grupos políticos são acossados; paradigmático disto foi a tentativa de silenciamento de partidos sem grupo parlamentar só porque mostraram que iam criar dificuldades ao poder instalado. Fosse – como antes foi – só simpatias e bonança e todas as excepções serviam! Assim a democracia adoece! Mas este desconforto com uma das expressões maiores da democracia, a liberdade de falar, dá alguns sinais de preocupação quando vemos a dificuldade que vários poderes têm em lidar com ideias, movimentos ou partidos (normalmente da ala direita porque os da esquerda parecem ungidos de qualquer “transcendência”) fora do mainstream, do status quo. Aí se apela ao ignorar, fazer de conta que não existem ou acantoná-los a pré-juízos que os marginalizem com exagerada repulsa como se não pudessem ter voz. Apelidam-nos de fascistas e outros “istas” que tal. Ter voz é um dos pilares da democracia; vozes diferentes, até pouco ortodoxas, não propagam vírus e devem ser bem ouvidas, nem que seja para as combater. Não há aqui carimbos à partida como se democratas fossem uns e os outros não merecessem estar na casa da democracia apesar de outros similares no radicalismo ou extremismo há muito ocuparem aí o seu lugar. Não tenham medo da democracia a funcionar. Não defendendo qualquer desses novas confluências que surgem, a verdade é que temos mais medo daqueles que vêm sem se saber a quê, dos que mostram logo ao que vêm. Não é com o calar que se combate afloramentos mais ou menos populistas, mas na luta das ideias e sobretudo no fazer bem, de forma verdadeira e limpa. Se houver uma cultura de boa gestão, de responsabilização, de verdade, estes epifenómenos deixam de ter campo aberto para avançar. Não é, pois, com democracias à medida, ad hoc e que criam ferrolhos a que todos possam ter voz, que combatemos os perigos que espreitam. Mas também não é com o arregimentar de seguidismos de quem vê nos partidos um clube; aqueles perigos alimentam-se destes. As redes sociais exponenciam esta partidarite aguda em que se defende uma coisa e o seu contrário basta que venham da sua ala ou da oposta: é o défice que não é para cumprir ou o défice que a seguir é fundamental; é a vergonha do aumento dos impostos antes, a importância destes para o Estado Social depois e por aí em diante. O mais grave é que esta democracia imprópria se vai reflectindo até nos dirigentes máximos dos partidos ou movimentos políticos – mesmo em candidatos àqueles – que têm pejo em defender ou até concordar numa ideia – ainda que boa – vinda de outros. Entra-se neste jogo perigoso que descredibiliza a democracia por não se ver além de interesses próprios em benefício de um país. Causa mesmo admiração, em muitos incredulidade, que um líder possa assumir compromissos que vão além daquele sectarismo próprio de democracias arcaicas e amorfas. Que interessa, senão às amarras ideológicas gastas, se uma proposta vem vestida de azul, amarelo ou verde desde que comungue de valores, princípios e linhas bem precisas que enformam o bem comum? Talvez, como o slogan criado por Pessoa, primeiro se estranhe e depois se entranhe e, assim, não se adie mais Portugal!
Autor: António Lima Martins
DM

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3 janeiro 2020