O futuro reclama perspetiva, sageza e ponderação. É assim no plano pessoal como no respeitante à vida coletiva dos povos, neste último caso sempre muito dependente da qualidade dos seus atores ou servidores políticos – e isto a despeito de todos retermos a velha frase atirada por J. F. Kennedy há mais de meio século, quando avisou os americanos de que “deviam perguntar-se acerca do que poderiam fazer pelo seu país e não acerca do que o seu país poderia fazer por eles”.
De forma quase inopinada aí está a crise política “à portuguesa”. Incontestavelmente, a responsabilidade desta crise é imputável à esquerda, na sua globalidade, que não mostrou possuir mais arte para dar mais futuro ao governo atual. Demonstrativo do caráter inopinado desta crise, a direita, que aspira a voltar ao poder, a escassos dois meses e meio do novo sufrágio para o Parlamento encontra-se algo perdida na procura de estratégias e de líderes para apresentar ao eleitorado.
À esquerda, particularmente entre o PCP e o Bloco, burilam-se argumentações para sustentar a razoabilidade do chumbo orçamental que patrocinaram. Por agora, algumas sondagens apontam para que estes dois partidos venham a ser penalizados na opção tomada. E muito provavelmente assim será, é a minha “aposta”, ainda que não ignore o recorrente desacerto das sondagens. Do lado do Partido Socialista, a queda do seu governo propicia uma natural acrimónia com os ex-parceiros da “geringonça”, mas exige também uma reponderação de eventuais parcerias e fronteiras políticas no futuro próximo, isto é, após as eleições de 30 de janeiro de 2022.
A solução política da “geringonça” nasceu em 2015 impulsionada pelo PCP e colheu simpatia em boa parte do país, cansado da terapia de choque do governo de Passos Coelho, que quis “ir além da troika”.
E assim, forjou-se à esquerda – com PS, o Bloco, o PCP e conexo Partido Ecologista os Verdes – um entendimento um pouco à imagem da “Frente Popular” na Europa do século passado. Todavia, perante a ausência de um pacto formal, a solução da “geringonça”, assente num executivo do Partido Socialista de facto minoritário, estava condenada a assumir um caráter essencialmente estratégico (remover diversas alterações do governo “passista”), mas precário na sua duração. De facto, são substantivas as diferenças programáticas e de perspetivas entre o PS e os ex-companheiros da geringonça, designadamente o Bloco e o PCP. Não obstante a terminologia “socialista”, os governos do Partido Socialista, na atual era democrática pós-25 de Abril, como sucede hoje com generalidade dos partidos socialistas, trabalhistas ou sociais-democratas da União Europeia, têm convivido bem com o capitalismo liberal, com o projeto global da União Europeia e até com a integração de Portugal na NATO (opção que se revelou mais difícil de adotar pelo PSOE em Espanha, por exemplo). De forma mais marcante o PCP – que desdenha a União Europeia, e o Euro em particular, assim como a presença de Portugal na NATO – e de forma algo menos incisiva o Bloco – que critica acidamente muitas das políticas da União Europeia e que vê o capitalismo liberal como espécie uma espécie de mal menor –, ambos apresentam assinaláveis divergências programáticas e estratégicas com o Partido Socialista. Com a memória das políticas do governo de Passos Coelho já diluídas, verificada a estagnação dos rendimentos dos portugueses – afora os remunerados com o salário mínimo –, e em particular das classes médias onde o Bloco também colhe votos, as reclamações do Bloco e do PCP perante o governo do PS subiram de tom, até que a rutura se consumou.
Na Europa do Centro-Noroeste, mais desenvolvida e democraticamente mais madura, são comuns os exemplos de soluções governativas pós-eleitorais só conseguidas após aturadas e alargadas negociações. Assim tem sucedido na Alemanha, na Dinamarca ou na Holanda, por exemplo, onde as maiorias absolutas de um só partido são incomuns. Umas vezes reunindo vários partidos numa coligação governamental, sustentada pela definição das possíveis linhas comuns das respetivas propostas programáticas e governativas, outras agregando os dois partidos mais votados, numa espécie de “bloco central”, como sucedeu nos últimos governos liderados pela chanceler Merkel na Alemanha.
Aos eleitores portugueses, a par das propostas programáticas para eventual assunção de um futuro governo, assiste o direito de uma clarificação prévia das fronteiras políticas estabelecidas pelos diferentes partidos, designadamente com a indicação das coligações proibidas após as eleições, para que possam assumir as suas opções partidárias de forma consciente. Todavia, as fronteiras estabelecidas pelos partidos que almejem a governação não deverão ser demasiado rígidas na ostracização de adversários no sufrágio, de molde a viabilizarem razoáveis e duradouros acordos pós-eleitorais. Também por isso, afigura-se-nos pouco razoável a postura daqueles que no PS e no PSD – os partidos que as sondagens continuam a prever como os mais votados no próximo ato eleitoral – recusam liminarmente a possibilidade de um entendimento mínimo para uma eventual solução governativa, em moldes a definir, se das urnas não resultar nenhuma solução estável, à esquerda ou à direita, que dispense o seu encontro de posições. Um bloco central eleitoralmente muito alargado, assente numa maioria parlamentar sufocante, não seria nunca saudável para a democracia, mas uma eventual sucessão de governos minoritários e precários também não a credibiliza.
Numa democracia, os eleitores são soberanos a traçar os caminhos do futuro. E Portugal, ainda com muitas carências, precisa mesmo de mais e melhor futuro.
Autor: Amadeu J. C. Sousa