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Da morte e do morrer enquanto dimensões do viver

Quando chegar o dia do infortúnio, do luto, do acidente, quando a morte ameaçar, quando se estiver doente e a sofrer, é preciso que o equipamento atue para proteger a alma, impedir que seja atingida, permitir que conserve a sua calma.”(Foucault, 2004).

O conceito de luto remete para uma dimensão da experiência que muitos acreditam, ainda hoje, oposto à vida. No entanto, este processo vincula-se com o ser humano vivo. Todos estamos em processo de morrer – ninguém duvida que para tal fenómeno ter lugar é preciso estar vivo.

Existem ainda, aqueles que contam com mortes anunciadas a médio ou curto prazo. Poucas vezes referido, estas circunstâncias, análogas ao luto de si,podem conduzir a um nível de autoconhecimento e desenvolvimento «espiritual» invulgares (Jesuino & Oliveira, 2016).

É assim que o pré-anúncio de uma morte pode levar a que muitas pessoas cuidem de si mesmas desde uma perspetiva integral, levando seriamente em conta o mundo das suas relações afetivas. O ato de cuidar de nós é tão antigo quanto a filosofia (Foucault, 2004) remetendo-nos para dimensões virtuosas tais como a humildade e a paciência. A morte de alguém próximo levanta questões que por vezes não sabemos muito bem como formular a nós próprios. Uma dessas questões tem a ver com a qualidade do tempo partilhado.

É natural que a morte como limite da existência ocasione angústia, porque é da natureza do ser cognoscente saber que vai morrer. Mas, em tempos de grande desenvolvimento tecnológico/científico/médico a morte é vista como um fracasso e a dor do luto por vezes é tida como uma patologia.

Só que, se a morte não tem qualquer sentido corremos o risco de que a vida se torne um absurdo. Temos dificuldades em ressocializar a morte porque andamos distraídos da vida, sem apercebermo-nos que vida e morte são realidades de um contínuo onde nada se perde – tudo se transforma. Estranho seria afirmar o contrário, as evidências da Natureza assim o confirmam.

Muito embora os esforços que se destinam desde diferentes âmbitos do conhecimento humano – cientifico, filosófico, religioso/espiritual e outros – a ressocialização da morte ainda está longe.

Escondemo-la das crianças ao mesmo tempo que os adolescentes percebem que devem manter distância dela. Numa sociedade de informação, onde tudo é instantâneo e deixamos que a pressa se nos imponha, vemos a dor da morte como um fenómeno estranho e somos surpreendidos da pior maneira quando a sua proximidade nos envolve.

Fruto de um processo de evolução cultural, associado às melhorias das condições de vida, foram-se marcando profundas alterações da nossa perceção face à morte e ao morrer. Na baixa Idade Média todos reconheciam com alguma naturalidade a sua mortalidade – muito provavelmente porque morria-se muito cedo – o que fazia com que as pessoas se preparassem com antecedência para esse instante.

Entre os séculos XII e XIV a morte converteu-se num momento em que todas as particularidades da vida eram escrutinadas, sopesadas e julgadas, tudo com base na esperança da «vida eterna» ou no medo da condenação. A partir do século XVIII a morte suscitou exaltação, contestação e espetacularidade – é o receio da separação, da morte do outro.

No século XIX emergem os grandes cemitérios, os funerais pomposos, as peregrinações – o essencial é substituído pelo superficial e perde-se a familiaridade. No século XX, com o progresso dos cuidados médicos e das tecnologias, a morte tornou-se vergonhosa. Tão próxima e tão distante… Inominável… Acreditamos no «depois de…» ao mesmo tempo que negamos o instante de…

Temos de nos dar a oportunidade de expressar a tristeza e a revolta quando estas são sentidas, só assim abrimo-nos à aceitação. Podemos e devemos dar a conhecer e gerar espaços de entreajuda onde o sofrimento partilhado ofereça oportunidades de aprendizagem.

É preciso abrir as fronteiras do conhecimento para que as pessoas procurem o âmbito explicativo que mais lhes preencha o coração. É preciso aprender a ouvir a quem está numa situação de luto e para isso é imprescindível poder falar da morte e do morrer enquanto dimensões do viver.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Foucault, M. (2004).Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins da Fonte Ed.

Jesuino, J. & Oliveira, C. (2016). Do luto. Braga: Aletheia.


Autor: Pável Modernell
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29 setembro 2018