No próximo dia 29 de maio, terça-feira, irão ser discutidos e votados quatro projectos de lei para legalizar em Portugal a eutanásia. Gostaríamos, neste pequeno artigo, de apresentar uma reflexão sobre o assunto, a partir de três perspectivas: jurídica, cultural e social.
Ao nível jurídico, perguntamo-nos como se pode legislar sobre um assunto em que estão em causa actos concretos que ponham fim a uma vida humana, quando no artigo 24 da Constituição se refere explicitamente que «A vida humana é inviolável»?
De facto, a lei do aborto abriu precedente neste tipo de incoerência constitucional: a sua aparência de constitucionalidade é a referência às competências legislativas da Assembleia da República. Deste modo, esta lei de 2007 limita-se a fazer à Constituição uma referência formal e não de conteúdo.
Tal fenómeno parece reflexo de uma cultura preocupada mais com a formalidade, do que com o conteúdo; mais com a validade, do que com a verdade; mais com uma certa coerência lógica, do que com o fundamento real e ético.
Importa também salientar que a lei da eutanásia resvalará para uma subtil discriminação de quem é mais débil. Veja-se a experiência da Holanda, na qual já se concede a eutanásia a quem adquiriu uma deficiência física e alegue, por causa dela, um sofrimento insuportável, mesmo que seja só ao nível existencial ou psicológico.
A eutanásia é, assim, uma forma muito subtil de se rejeitar a deficiência. Sobre este aspecto específico, é eloquente a contraposição de dois testemunhos conhecidos de pessoas que adquiriram tetraplegia: Ramon Sampedro e Javier Romañach.
Não conseguindo a cura da tetraplegia que adquirira, Ramon Sampedro lutou pela morte assistida, pois considerava: «Para mudar a minha vida, só uma coisa é necessária: curar-me»1. Perante esta afirmação, Javier Romañach contesta: «É curioso que uma pessoa que só necessita de uma coisa para mudar a sua vida, a cura, acabe envolvida numa luta pela morte. Na sua luta pela dignidade na morte, ignorou uma outra solução: a luta pela dignidade na vida das pessoas com deficiência»2.
Estes casos demonstram que a eutanásia esconde uma falsa visão da deficiência e do sofrimento que, em vez de humanizar, desumaniza e discrimina.
Tal discriminação estender-se-á, inevitavelmente, às pessoas idosas, com um nível avançado de debilidade física e psíquica. Este tipo de discriminação é evidenciado pela «prova de Ruskin»3, pela qual se interpelou um grupo de pessoal médico em formação, apresentando-lhes os dados de uma pessoa que «não comunica verbalmente, nem entende a palavra falada. Não se interessa nem coopera no seu próprio asseio. Não pode andar e o seu padrão de sono é irregular, despertando frequentemente de noite e acabando por acordar os outros com os seus gritos»4.
Depois de uma reacção negativa da maior parte do pessoal médico presente, que espontaneamente considerou ser muito difícil tratar assim de uma pessoa idosa, Ruskin fez circular entre os participantes a fotografia da pessoa em causa: uma criança de 6 meses. Esta simples interpelação pretendeu levar a considerar «se o solene e auto-gratificante compromisso de nunca se fazer discriminação pode ceder perante as diferenças de peso, idade, perspectiva vital, sentimentos que inspira o aspecto físico dos diferentes doentes ou se, pelo contrário, se deve sobrepor a estes dados circunstanciais»5.
Resta-nos concluir que esta discriminação social de quem não preenche os requisitos de qualidade de vida, padronizados pela sociedade do bem-estar, e um falso sentimento de auto-suficiência, que não aceita qualquer tipo de compaixão por parte dos outros, são os dois principais aspectos que estão por trás da eutanásia. Com a sua legalização, tais atitudes de prepotência agravar-se-ão nesta sociedade dita “civilizada”.
1
SAMPEDRO, R. Cartas desde el infierno,157. Apud. ROMAÑACH, Javier.Los errores sutiles del caso Ramón Sampedro.“Cuenta y Razón del Pensamiento Actual” [adaptado].
2
ROMAÑACH, Javier.Los errores sutiles del caso Ramón Sampedro.“Cuenta y Razón del Pensamiento Actual” [adaptado].
3
HERRANS, Gonzalo. A Medicina Paliativa, Exercício de Ciência e Humanidade.“Atlântida”.
Autor: José Tiago Pereira Varanda