Na nossa última reflexão, a propósito das letras e do desporto, fizemos menção a um grande filósofo latino, natural de Córdova, Séneca. E foi das suas cartas ao amigo Lucílio que citámos um passo para colocar em evidência a sua opinião acerca de uma realidade do seu tempo e que nos pode servir de lição para o presente.
Diz ele, nessa Carta 80, depois de sublinhar a ‘debilidade mental’ dos atletas de ‘espáduas musculadas’ que, «se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada?!
De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar. Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não precisarás de despender um tostão em equipamento!
Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti. Para seres um homem de bem só precisas de uma coisa: a vontade. Em que poderás exercitar melhor a tua vontade do que no esforço para te libertares da servidão que oprime o género humano, essa servidão a que até os escravos do mais baixo estrato, nascidos, por assim dizer, no meio do lixo, tentam por todos os meios eximir-se?
O escravo gasta todas as economias que fez à custa de passar fome para comprar a sua alforria; e tu, que te julgas de nascimento livre, não estás disposto a gastar um centavo para garantires a verdadeira liberdade? (…) Mas para quê falar dos outros? Pensa em ti: se quiseres saber quanto vales não atendas aos teus rendimentos, à tua casa ou à tua posição social, olha sim para dentro de ti, em vez de, como agora, acreditares no valor que os outros te atribuem!».
Como escreve o professor italiano Nuccio Ordine (A utilidade do inútil, pág. 14), «Tudo se pode comprar, é verdade. Dos deputados aos juízes, do poder ao sucesso, cada coisa tem o seu preço. Mas o conhecimento, não. O preço a pagar pelo conhecimento é de outra natureza bem diferente, nem um cheque em branco nos permitirá adquirir automaticamente aquilo que é fruto exclusivo de um esforço individual e de uma paixão inesgotável. Ninguém poderá realizar em vez de nós o laborioso percurso que nos permitirá aprender».
Depois, após a menção a um passo célebre do Banquetede Platão, em que se nega a possibilidade de a sabedoria se transmitir automaticamente de um ser humano a outro à semelhança da água que desliza por um fio de lã desde o recipiente mais cheio para o que está mais vazio, ele conclui da forma mais eloquente: «Só o saber pode desafiar uma vez mais as leis do mercado. Eu posso comungar com os outros os meus conhecimentos sem empobrecer. Posso ensinar a um aluno a teoria da relatividade ou ler juntamente com ele uma página de Montaigne, pondo em acção um miraculoso processo virtuoso que enriquece, ao mesmo tempo, quem dá e quem recebe».
Entre nós, a maior homenagem aos Homens das Letras é-nos transmitida por um dos grandes mestres da Academia Bracarense e insigne Professor que foi da Facultas Philosophica Bracarensis, Pe. Lúcio Craveiro da Silva, S. J. Diz ele no seu Curso de Filosofia Moral, um manual universitário que há pouco veio a lume numa primorosa edição bilingue (pág. 39): «se damos bens materiais, perdemo-los, mas tal não acontece quando se trata dos bens espirituais… quando damos bens espirituais, não os perdemos, mas tornamo-nos ricos pela própria doação».
Autor: António Maria Martins Melo
Da glória das Letras!

DM
7 abril 2018