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Crónica de um naufrágio

No início de cada novo ano é tempo de arrumar ideias e, até, de arranjar espaço físico para as novas papeladas relativas aos rendimentos, despesas e impostos que irão ser sacados pelo fisco durante os 365 dias de vida, que Deus venha a conceder a cada contribuinte. Daí, ter-me decidido dar destino a alguns livros, de entre os quais uma série de pequenos contos infantis, editados pela ‘Lelo & Irmão’ em 1974, que adquirira para a minha filha, ainda criança. Não sem antes ler um deles, intitulado: “As Viagens de Gulliver”.

Tratava-se de um médico, desperto para as lides de marear, que numa das suas atribuladas viagens viria a naufragar na costa de Lilipute, a 5 de novembro de 1699, tendo conseguido chegar, aí, a nado são e salvo. Era uma terra que nunca antes vira e onde não via vivalma, até que extenuado, caiu no chão e adormeceu. Porém, ao acordar, Gulliver viu-se amarrado pelos seus longos cabelos, pés e mãos ao solo. Foi quando sentiu algo, de forma branda, a subir-lhe pela perna. Era um homem minúsculo, de uns 15 cm, a que se lhe seguiram dezenas, e depois centenas deles, estarrecidos perante aquela gigante figura.

Segundo reza a crónica, Gulliver viria a ser apresentado às autoridades que governavam aquela terra, inteirando-se do sistema político – ali vigente – em que duas fações antagónicas, de ‘minorcas’, se digladiavam há largos anos, por entre avanços e recuos na governação do país e cujos males ameaçavam a segurança do estado. Eis, pois, o relato da política que, lá, se vivia nessa altura:

- “É tão grande a inimizade entre os liliputianos que se formaram dois partidos que não se querem sentar à mesa, nem conversar um com o outro. E o que um partido realiza, logo o rival desfaz. Um afirma que o outro não sabe fazer nada que jeito tenha. E qualquer medida proposta pelo seu adversário é sempre má ou estulta. Do mesmo modo, toda a lei nova promulgada pelo partido que se encontre no poder é sempre, no dizer da oposição, um atentado contra as liberdades do povo ou, então, destina-se unicamente a conservar os dirigentes no governo e os oposicionistas fora dele. Chegando as coisas a tal ponto que os negócios do estado estão quase paralisados”.

Ora, também em Portugal há duas forças partidárias – que vêm governando o país há quase meio século – a disputarem eleições democráticas a 30 de janeiro de 2022. Não só para ser eleito um novo Governo e Parlamento, como um Primeiro-ministro saídos de entre eles. É que se, porventura, Gulliver saltasse da historinha e viesse cá parar pensaria, certamente, estar em Lilipute-2. Dado que por cá, também esses dois maiores partidos políticos: o ‘Socialista (PS)’ e o ‘Social Democrata (PSD)’, andam sempre a destilar ódio ideológico por visões distintas para o país.

Tudo se tem conjugado num desperdício de energias por interesses partidários e disputas pelo favorecimento a barões, baronetes, amigalhaços e outros que tais, marimbando-se para o povo em geral. Prova disso, é chegarmos aqui e assistirmos ao afogamento das principais instituições do Estado: saúde, educação, Justiça e administração pública sem aptidão para as funções a que se destinam.

Por outro lado, somos uma nação de políticos ‘micrómegas’ e ‘mesquinhos’. Mais interessados nos cargos e no surripianço do dinheiro proveniente dos impostos (sangue, suor e lágrimas dos contribuintes) e despachá-lo, a todo o vapor, para contas em longínquas paragens. Ou, então, procurando entrar a bordo do salva-vidas da União Europeia, ainda que o país fique exangue.

Sem horizonte, nem rumo, estes dois partidos em vez de assegurarem a rota do navio, mais parece quererem afundá-lo. Pouco preocupados com o investimento, criação de riqueza e produtividade, a fim de que haja melhores salários e um ‘estado social’ sustentável. Enquanto assim for, não andaremos longe do ‘conto infantil’, em que ambos não só não se entendem como, ainda, irão fazer deste país o ‘naufrago europeu’.


Autor: Narciso Mendes
DM

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3 janeiro 2022