Quando era pequenino, lembro-me bem de minha mãe contar uma lengalenga para me adormecer cujo teor era mais ou menos o seguinte: “À morte ninguém escapa, nem o rei nem o bispo nem o Papa. Mas hei-de escapar eu! Compro uma panelinha, custa-me um vintém, meto-me dentro dela e tapo-me muito bem. Então a morte passa e diz: – truz, truz! Quem está aí? – Aqui não está ninguém. – Adeus meus senhores, passem muito bem.”
Este texto, que mais tarde soube tratar-se da letra de uma cantilena tradicional popular, veio à minha memória neste tempo de quarentena voluntária, quando procurava exorcizar a angústia desta pandemia coronovírica que assola Portugal e o mundo.
Como cristão, intuo nesta historieta o profundo desejo humano da imortalidade da alma e a firme convicção de que a morte não pode ser encarada como aniquilação absoluta, mas antes como uma passagem para a verdadeira vida.
Mas isso não me coíbe de valorizar a vida terrena como um bem precioso, um dom divino que deve ser preservado e defendido e de reflectir sobre a melhor forma de encarar esta perigosa epidemia que contagia em massa, que mata tanta gente, que aterroriza e para a qual, infelizmente, ainda não foi descoberto um antídoto que a permita conter e vencer.
E por muito que as questões da pobreza, das desigualdades e das mudanças climáticas interpelem a nossa consciência colectiva, não há dúvida de que nenhuma tem como esta do coronavírus o trágico poder de colocar em crise, de forma tão imediata e tão virulenta, as certezas de uma civilização pós-moderna, assente na globalização e na cibernética.
De repente, num volte-face absolutamente imprevisível, veio à tona a fragilidade da vida, a sua precaridade, lembrando-nos a nossa natureza de peregrinos e a sacralidade da morte como páscoa para a eternidade. E, também, pondo a nu as debilidades e insuficiências de um Serviço Nacional de Saúde que se mostra incapaz de fornecer aos médicos e enfermeiros os mais simples equipamentos de protecção (vg fatos e máscaras) e de garantir a existência de ventiladores em quantidade adequada para uma situação de crise de tamanha magnitude!
Perante a gravidade da situação e dos casos tão próximos e tão paradigmáticos da nossa vizinha Espanha e, sobretudo, da Itália, pasmo que o Senhor Presidente da República não tenha tomado a iniciativa de promover a decretação do estado de emergência no país logo que, em meados da semana passada, se tornou evidente a necessidade de estancar a propagação da epidemia e de impor ao governo a execução de medidas urgentes adequadas, tanto ao nível da saúde como da segurança social e da economia.
Ainda bem que uma boa parte da sociedade civil teve o bom senso de antecipar voluntariamente a quarentena, minimizando assim os efeitos de contágio da doença.
Todavia, ficou a percepção de uma chefia de Estado fraca e temerosa, mais preocupada com a reeleição e com a sintonia com o Governo do que com o interesse nacional…
Acresce que, mesmo com a decretação do estado de emergência na passada quarta-feira, não foram ainda dadas aos cidadãos as garantias necessárias e convincentes para que encarem sem ansiedade e com o mínimo de segurança as adversas situações económicas e financeiras que inevitavelmente advirão do estado de emergência oficialmente imposto. E é urgente que tal garantia seja dada, tanto ao nível nacional como ao nível europeu, considerando a dureza do impacto económico da paragem da economia e dos fracos recursos do orçamento português para fazer face a um tão rude golpe.
É que nesta “panela” colectiva em que nos achamos confinados não é só a vida de uma determinada percentagem de cidadãos que está em causa – o que só por si seria suficiente para justificar o maior empenho e os mais elevados sacrifícios das autoridades responsáveis –, mas a viabilidade de um país com quase nove séculos de existência.
Por isso é que temos de estar preparados para que, quando aquela sinistra Senhora, feia e de foice em punho, passar à nossa porta e disser “truz, truz!”, possamos responder-lhe, parafraseando Pessoa, no dito do homem do leme ao Mostrengo, “que aqui está um povo que quer a terra e o mar que são teus” e que quer continuar “a vontade, que o ata ao leme d`El-Rei D. João Segundo”!
Autor: António Brochado Pedras
COVID-19: TRUZ-TRUZ!
DM
20 março 2020