Sobre o coronavírus já muito se disse, e uma das mais atinentes afirmações foi a do médico italiano, que avisou: “o medo é o vírus e a informação a vacina”. No entanto, o que pretendo considerar é como a literatura muitas vezes antecipa a realidade, não sendo de surpreender, no actual ambiente temeroso da propagação do coronavírus, que haja livros avidamente procurados, como em Itália A Peste (1947) de Albert Camus e Ensaio sobre a Cegueira (1995) de José Saramago – ficarão para outra reflexão –, além de vários outros sobre epidemias reais ou imaginárias, a maioria passados à sétima arte.
1. Os Olhos da Escuridão (“The Eyes of Darkness”, 1981), de ficção científica, do escritor norte-americano Dean Koontz, previu, há cerca de 40 anos, uma epidemia cujo vírus designou precisamente por "Wuhan-400"; se na 1.ª edição, era em "Gorki-400" (cidade russa, agora Níjni Novgorod) que o vírus surgiria, com o final da Guerra-fria fixou o nome chinês, precisamente onde agora apareceu o coronavírus; todavia, o vírus imaginado por Koontz seria um microorganismo vindo dum laboratório militar chinês que só atacaria os humanos, com uma taxa de mortalidade de 100% (a do Covid-19 é de 2-3%).
Citando outros livros, temos A Peste Escarlate (1915) em que Jack London narra uma visão apocalíptica do mundo, que retornaria ao estado selvagem, após a passagem dum vírus, em 2073, que provocará uma doença nunca antes vista e que dizimará a humanidade: "num abrir e fechar de olhos, dez mil anos de cultura e de civilização se desfizeram como espuma". A Sombra do Escorpião (1978) do mestre do terror Stephen King é também um romance apocalíptico que imagina uma pandemia causada por um vírus, saído de laboratório, capaz de infectar 99,4% da população. Já Le Hussard sur le Toit (1951), de Jean Giono, relata um coronel italiano dos hussardos vagueando pela Provence, com uma bela mulher que busca o seu marido, num país devastado por um surto de cólera. De referir ainda Nemesis (2010), de Philip Roth, uma ficção que narra os efeitos dum surto epidémico de poliomielite na cidade Newark (Verão de 1944), La Quarantaine (1995), em que J. M. G. Le Clézio nos enreda numa trama que mostra como vêm ao de cima múltiplos conflitos existenciais entre os que desembarcaram, atingidos por varíola, em 1891, em quarentena, numa ilha do Oceano Índico, ou o conhecido romance Amor nos Tempos da Cólera (1985), de Gabriel García Márquez, sobre uma paixão em ambiente de cólera numa cidade inspirada em Cartagena de las Índias (Colômbia), no final do século XIX.
2. Um dos mais antigos é o livro de Tucídides (século V a.C.), História da Guerra de Peloponeso, em que narra a “peste de Atenas”, em que recorreu a écfrases (discursos que tentam “pôr sobre os olhos” aquilo que aconteceu): as pessoas eram aí "[...] subitamente, atacadas de febres altíssimas na cabeça e de vermelhidão e inflamação nos olhos, e as partes internas da boca (a garganta e a língua) ficavam imediatamente da cor de sangue e passavam a exalar um hálito anormal e fétido. Estes sintomas eram seguidos de espirros e rouquidão, e pouco tempo depois o mal descia para o peito, seguindo-se tosse forte. Quando o mal se fixava no estômago, este ficava perturbado e ocorriam vómitos de bílis de todos os tipos mencionados pelos médicos, [...]" (II, 49). Na sua História, Tucídides inquire como males extremos – peste e guerra – transformaram as instituições e as pessoas, ele incluído (foi general e contraiu a doença), sofrendo na pele, com os seus concidadãos, essas duas situações-extremas.
3. Em certo momento, um tripulante do Diamond Princess desabafou: "Para quê isolamento? Estamos fechados numa caixa já infeccionada". Com o avanço do coronavírus, a metáfora ameaça passar do navio para a cidade, o país, a humanidade; e significa mais: passar da peste-enfermidade para a peste que tolhe a liberdade de expressão, persegue cientistas, impõe o silêncio... Como escreveu o filósofo Frédéric Worms no Libération, "a epidemia é política", sustendo que "o melhor remédio contra a epidemia viral é a democracia, em que o vital e o político não podem ser separados, como o mostrou A Peste de Albert Camus". Com efeito, Camus escreveu: "O flagelo não está à medida do homem, por isso dizemos que o flagelo é irreal, é um pesadelo que vai passar. Mas ele não passa sempre e, de pesadelo em pesadelo, são os homens que passam, e os humanistas, em primeiro lugar, porque não tomaram precauções".
Na China, como sabemos, aos alertas de médicos e cientistas, o governo totalitário impôs o silêncio, reprimiu cientistas, obstruiu a informação, não deteve (no início) o contágio do vírus. O médico Li Wenliang foi impedido, perseguido, e viria a morrer depois! Não o ter escutado ficou caro ao mundo, aos que já perecerem, aos infeccionados, à própria China. Voltamos à frase inicial: “o medo é o vírus e a informação a vacina”. Camus já tinha razão desde A Peste (fica para a próxima).
O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
Coronavírus
DM
7 março 2020