Deste modo, sentia as suas responsabilidades no comportamento que devia devotar-lhes com mais veemência, porque todo o carinho e preocupação que os progenitores lhe dedicavam eram únicos, dirigidos num só sentido – ou seja, a ele e só a ele – e tudo isso o tornava mais consciente das obrigações de filho.
Por outro lado, acrescentou, constatava com regozijo que vivia numa certa abundância de bens materiais próprios, que o rodeavam dum modo agradável. Mais uma forma dos pais – observou – lhe exprimirem o seu amor, porque se tivessem de repartir esses bens por outros filhos, empobreceria a todos e nenhuma vantagem daí resultaria. E acrescentou: “Mas isto não me tornou egoísta, porque quando alguma dessas «coisas» começa a precisar de “reforma”, imediatamente a faço chegar a uma obra de caridade. Assim me ensinaram”.
Confesso que comecei a sentir-me um pouco desgostoso com a sua argumentação sobre as vantagens de ser filho único. Mas o meu interlocutor ocasional continuou o seu discurso, achando muito natural que o pai e a mãe, depois de quinze anos de vida em conjunto, determinassem diversificar as suas companhias. Deste modo, a mãe encontrou um companheiro muito simpático, que vivia desde então na sua casa, mas não interferia em nada na sua relação de filho para com a mãe e da mãe para com o seu filho, pelo que não lhe causava problemas educativos.
Quanto ao pai, ele devia compreender que a amiga com quem coabitava já tinha dois filhos duma relação anterior, pelo que a sua ida ao novo lar paterno tornava-se um pouco menos acolhedora, apesar de nada ter a criticar sobre o amor carinhoso do pai, que continuava a manifestar-lhe um afecto de eleição, que em nada se comparava, certamente, com as relações de convivência diária com os descendentes da sua nova “cara-metade”.
Suspeitava, até que, de vez em quando, haveria algumas escaramuças relacionais. Não se metia nelas, pelo menos enquanto o pai continuasse a manifestar para consigo tantas atenções e manifestações de verdadeira e prioritária amizade e consideração. Virou-se para mim e perguntou-me: “O senhor padre é filho único?” Respondi-lhe que não. “Então tem mais algum irmão ou alguma irmã?" “Mais um ou uma, não. Somos nove irmãos, entre rapazes e raparigas”.
Ficou estarrecido, boquiaberto, completamente perplexo. Torceu o nariz, abriu os olhos quase até ao cima da testa. “Que exagero!” Respondi-lhe com simplicidade: “Nunca notei isso...”. “Mas o senhor padre é feliz, foi feliz? Os seus pais gostavam de si?” “Muitíssimo, afirmei, de mim e de todos os outros filhos...” Não entendia: “Mas não havia uma barafunda tremenda com tanta gente? Foram todos bem-educados? Os seus pais nunca pensaram em separar-se...?” Observei-lhe: “Além de serem muito amigos um do outro e de todos os filhos, como já lhe disse, tinham um grande sentido de responsabilidade e nove razões muito sérias que confirmavam o seu amor todo o dia e toda a noite, pelo que nem sequer lhes passava pela cabeça essa hipótese...”.
A viagem chegou rapidamente ao seu termo. Despedimo-nos, trocando telefones para eventuais encontros futuros. Continuava a fitar-me com sobressalto, como se eu fosse um lunático ou um ET inadaptado à realidade terrena. Ao voltar-me as costas para sair, ouvi-o murmurar entre dentes: “Nove filhos! Safa!...”
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva