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Contra o “coiso”

Uma dramática interrogação subsiste incontornável desde domingo: por que razão Jair Bolsonaro, um indivíduo tão indigente do ponto de vista moral, com ideias tão repugnantes, que deveriam envergonhar qualquer pessoa com um módico de decência, obteve os votos de milhões de brasileiros e pode ser o próximo Presidente do Brasil? Eliane Brum, escritora e jornalista, ofereceu, na segunda-feira, na edição brasileira do jornal El País, mais do que uma resposta, os conselhos certos sobre como lidar com tão aterradora criatura. É que Bolsonaro, que tantos designam por o “coiso”, “não apenas ampliou o ódio, ele também sequestrou o debate. Este tempo já foi perdido por quem aposta na democracia. Mas o tempo não foi perdido para os que apostam no caos, porque o ódio foi ampliado e os muros ficaram ainda maiores e mais difíceis de serem atravessados por qualquer diálogo”. A escritora explica aos eleitores de Bolsonaro que ser contra a corrupção não é uma justificação para que o tivessem escolhido. Fosse essa a razão e poderiam ter votado noutros candidatos que não eram suspeitos de corrupção. Votar em Bolsonaro implica compartilhar as suas ideias e o seu ódio. “Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida”. Rejeitando em absoluto Bolsonaro, Eliane Brum não oculta críticas a Lula e ao seu Partido dos Trabalhadores (PT). “Se Lula fosse um estadista, ele teria apoiado um nome fora do PT. Alguém que pudesse aglutinar a esquerda e o centro, como Ciro Gomes [do Partido Democrático Trabalhista]. E Haddad poderia ter sido o vice. Mas Lula, infelizmente para o país, não é um estadista. Lula é um grande líder, mas não um estadista. Moveu-se nesta eleição por vingança, não pelo bem do Brasil”. Referindo que a eleição do “contra” se vai “acirrar” na segunda volta – Contra Bolsonaro versusContra o PT –, Eliane Brum nota que algum do ódio contra o PT se manifesta não contra os erros, mas por causa das virtudes do PT, que, no poder, estabeleceu quotas raciais nas universidades e ampliou os direitos das empregadas domésticas, duas políticas que, segundo a escritora, alteraram as relações de poder e confrontaram privilégios. Mas também há razões justas para censurar o PT, que, todavia, obterá o voto de Eliane Brum. O sacrifício será imenso. De tal modo, que terá, inclusive, pesadelos por ir votar “num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...)”. O desabafo da escritora é pungente: “Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha”. Seja como for, votará em Fernando Haddad, cujo projecto não é antidemocrático – nem o candidato ameaça rebelar-se contra o resultado das urnas ou contra a própria democracia, como o seu oponente. O requisitório visa ainda, por exemplo, Edir Macedo, “comandante da Igreja Universal do Reino de Deus e do grupo Record” (que colocou a sua televisão ao serviço do “coiso”, fundindo assim, descaradamente, um projecto de poder, media e religião) e o juiz Sérgio Moro (divulgar, a seis dias da eleição, uma delação com muitos meses foi “uma afronta ao Brasil”. Acreditando ser um herói, Moro “corre o risco de entrar para a história como um vilão). A “eleição foi sequestrada pelo ‘contra’” e, de facto, “em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra”. Todavia, acrescenta Eliane Brum, “mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor. Ou as almas se envenenam. E a gente adoece por dentro”. Importa, pois, ser contra – contra Bolsonaro – e, simultaneamente, ir tecendo um projecto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. “É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar”. O texto “Como resistir em tempos brutos” apela a que não seja permitido que “os nossos dias” – dias não apenas dos brasileiros – “sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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14 outubro 2018