Para lá do mar mediterrâneo esconde-se o conflito mais conhecido dos tempos contemporâneos. Escrito assim, de forma poética tal qual entrada majestosa de telejornal ocidental sobre os tiroteios em Gaza, não parece grave. Mas é – é muito grave.
O que se passa para lá da Linha Verde (‘Green Line’) que separa os territórios israelitas dos territórios palestinianos é para além de aceitável ou tolerável. E não o é, simplesmente, pelo constante desrespeito das fronteiras estabelecidas à luz dos tratados internacionais em 1949, antes de 1967 ou pouco depois de 1991. É-o, sobretudo, e acima de tudo, porque se tratada de uma violação flagrante e constante dos Direitos Universais da Humanidade – que não podem e não devem conhecer fronteiras. Este artigo desconsidera quaisquer outras considerações históricas para saltar, diretamente, para uma consideração básica: à luz do Direito Internacional e da justa representação dos povos, tanto Israel como a Palestina devem ser Estados reconhecidos pela comunidade internacional.
Atravessando a fronteira, saindo de Tel Aviv, em Israel, em direção a Ramallah, território palestiniano sob administração da Autoridade Palestiniano fortemente (senão exclusivamente) controlado pelas autoridades israelitas, não precisamos de qualquer linha, verde ou de outra cor, para entendermos o momento em que atravessamos a fronteira. Seja pelos check points, cujo tratamento diferenciador entre carros palestinianos e israelitas é evidente, seja pelos quilómetros de muros e vedações eletrificadas que encontramos. Esta é, aliás, e infelizmente, uma realidade comum: aos longos anos de barreiras psicológicas, que tendem a segregar as comunidades entre palestinianos e israelitas, somam-se os vastos quilómetros de muros superiores a 10 metros de altura.
Recuando à História recente, o conflito penetra nas nossas televisões com uma narrativa bem diferente e, quase sempre, apenas quando à ocupação permanente se somam episódios pontuais catastróficos – sejam os “rockets do Hamas”, o esplendor do escudo aéreo de Israel ou as constantes evacuações de Tel Aviv ou Gaza. Mas a dura realidade do quotidiano, essa dura e bizarra realidade, é bem distinta. Contrastando com as repetidas intenções de consagração de dois Estados, pela parte da comunidade internacional, de Israel, da Autoridade Palestiniana e do Quarteto (mediador das Nações Unidas para o processo de paz no Médio Oriente), podemos ver a luz que se esvanece nos olhos de quem habita do lado de lá do muro: onde os anos passam e a esperança de liberdade se transforma em pobreza, desigualdade e fatalidade num qualquer campo de refugiados. Campos esses, aliás, que são, para muitos palestinianos, a única forma de conseguirem uma habitação (não lhe chamarei digna, porque não é) uma vez que, para o mesmo custo de vida, o rendimento médio de um palestiniano é praticamente 1/10 (sim, um décimo) de um israelita.
Como se o contexto geográfico, económico, político, social e histórico do status quo não fosse suficiente, encontramos um outro – o dos avanços permanentes dos colonatos israelitas que acabarão, se nada for feito, por estabelecer várias fronteiras físicas entre os territórios da Cisjordânia e impedir a já pouco livre circulação de palestinianos nessa região (de Belém a Ramallah, de Nablus a Beita). Para ilustrar esta decadência moral, relato-vos o exemplo da cidade de Hebron – ou Khandilia para os palestinianos. Hebron é uma cidade palestiniana. Mas de palestiniana pouco tem.
A rua principal que une a zona histórica da cidade está interdita a palestinianos, somente disponível para israelitas e estrangeiros – que maleita essa de se nascer condenado a um passaporte que define a nossa liberdade na nossa própria casa –, tornando um percurso de poucos metros numa jornada de vinte minutos para contornar os bairros adjacentes. O controlo militar é semelhante ao de uma zona de guerra, com carros blindados a percorrerem as avenidas sob a constante banda sonora de tiros e sirenes. A liberdade – leia-se liberdade para os palestinianos, muito bem ilustrada em documentários da BBC e do New York Times – é inexistente: das revistas aleatórias aos abusos físicos e verbais por parte dos ocupantes (cuja religião é irrelevante para o que deve ser a decência do tratamento do outro) até à limitação das horas para banhos para palestinianos. É, enfim, como assistir ao transbordar de um copo de água num clima que nos faz lembrar os piores exemplos de apartheid.
Este texto pecará sempre por defeito, por inabilidade do autor, na ilustração da realidade, mas há, ainda assim, um apontamento que não pode deixar de ser referido.
No meio de toda a brutalidade silenciosa, de um status quo silencioso que não beneficia nenhuma das partes, comove-me saber que há uma geração determinada em mudar o rumo dos acontecimentos e em promover o que ninguém alcançou nos últimos 50 anos: o diálogo fraterno e a paz. De jovens universitários em Bethlehem ou militantes da Fateh Youth em Ramallah, na Palestina, a ativistas ambientais em Jerusalém Ocidental ou militantes do Young Meretz e do Young Labour em Tel Aviv, em Israel, há uma chama disponível para quebrar o rumo dos acontecimentos e a inverter a marcha, retomando o caminho dos Direitos Humanos e da tolerância.
Saibamos dar-lhes voz e colocá-los à mesa da decisão. Lutemos para que influenciem a opinião pública e o desejo de afirmação de dois Estados vizinhos, próximos e amigos. O próximo ano, principalmente até ao próximo novembro, será decisivo. A paz está por um fio – façamos por reforçá-lo, não por ignorá-lo.
Autor: Bruno Gonçalves
Condenados pelo passaporte

DM
24 novembro 2021