Por outras palavras, e exemplificando. Quem constitui uma família é no seu seio, no seu mundo próprio e também na perspectiva das suas exigências que deve realizar-se. Assim, é preciso mantê-la com o trabalho e dedicar-lhe o tempo que ela requer para a educação da prole, se existe, para a relação marido-mulher, pais-filhos, etc. É neste ambiente que a esmagadora maioria dos seres humanos nasce, cresce, se educa e se prepara para se tornar, no tempo oportuno, uma pessoa autónoma e capaz de enfrentar por si mesma as vicissitudes da vida.
Curiosamente, Deus, criador do homem, quando decide vir a este mundo concretizar a sua obra redentora, não surge como uma espécie de ET adulto, vigoroso e extraordinário, cheio de poderes espectaculares e extravagantes, que manifestassem desde o princípio que aí se encontrava alguém a quem todos deviam admirar. Pelo contrário, Jesus Cristo, Deus-feito-homem, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que encarna, teve uma evolução normal no seio de Maria, Sua Mãe e, quando nasce, tal como qualquer um de nós, é um criança inerme, isto é, totalmente dependente dos pais para poder subsistir.
Digamos de outro modo: se Nossa Senhora e S. José não tivessem sido, como os nossos pais, seres responsáveis, que cuidassem do seu Filho, Lhe dessem o alimento e os tratamentos iniciais de que um bebé necessita para sobreviver, Jesus teria morrido, pura e simplesmente. E já nem falemos da fuga para o Egipto. Não foi milagrosa, mas objecto do cuidado e da diligência, sobretudo de José, que conseguiu atempadamente fugir às garras dos soldados de Herodes.
Mas não termina aqui a história: Jesus aprendeu a falar, a comer, a rezar, a ser bem-educado com os seus vizinhos e com os seus próprios pais, através da educação persistente e esmerada que Nossa Senhora e S. José Lhe incutiram. Quando nos falam de um Jesus artesão ou carpinteiro, a sua “arte” não nasceu de forma miraculosa: foi aprendida de seu pai, pacientemente, que o teve de ensinar a utilizar as madeiras e os utensílios próprios de um profissional do seu ofício. Aliás, modesto, porque Jesus não ficou célebre por ser um super-exímio marceneiro, mas por outros motivos completamente diferentes, como sabemos.
Tudo isto nos revela a importância da vida quotidiana, com as suas pequenas coisas, certamente banais, repetitivas, talvez um pouco monótonas, mas que constituem o fulcro fundamental da realização de quase todas as pessoas. Para um cristão – para a maioria dos cristãos – ela é o meio privilegiado da sua santificação. Deus não lhe pede coisas mirabolantes ou inacessíveis. Trata-se de fazer bem o que se deve fazer diariamente, não desprezando o que requerem as exigências habituais a todas as horas e momentos. Pensar de outro modo é não superar uma adolescência lunática e não sedimentada pela maturidade. Deus aproveita as circunstâncias normais do nosso quotidiano para nos chamar para a eternidade.
A este propósito, conta-se que na chegada à porta do Céu, para o juízo particular, formou-se uma bicha de almas que se apresentava a Jesus. Uma delas era a de um homem, receoso do seu destino e com alguns problemas de consciência. Começou a ouvir Jesus fazer entrar nos céus os que tinham dado de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha sede, os que visitaram os doentes, os que vestiram os nus, etc. Ficou aflito, tentando recordar-se de alguma boa acção desse tipo para apresentar. Mas nada lhe ocorria, o que o tornou extremamente temeroso. Chegou a sua vez. Jesus analisou o ficheiro, observando: “Não há muitas coisas escritas sobre as tuas obras. Mas devo reconhecer que, estando Eu muito triste e desalentado, me fizeste rir a bom rir e sentir mais animado e optimista com as anedotas que Me contavas...”. E acrescentou: “Para o Céu!”.
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva