Provavelmente, muitos terão esquecido. Em outubro de 2009, o cadáver mumificado de um emigrante de 62 anos foi encontrado num apartamento do bairro de Beauregard, em Poissy, na periferia noroeste de Paris. O que mais então chocou a opinião pública dos dois países é que José Gomes Macedo – que cortara todos os laços com a família e os amigos – tinha já falecido há dois anos.
Ninguém dera pela sua ausência! Dado o seu avançado estado de decomposição, aquele reformado da construção civil originário de Vila Verde apenas pôde ser formalmente identificado graças ao número de série do aparelho auditivo.
José Gomes Macedo foi, durante uns fugazes instantes da narrativa mediática, o símbolo do flagelo social que constitui a solidão dos idosos, como o foi em 2011 Augusta Martinha, encontrada morta no seu apartamento de Rio de Mouro (Sintra), nove anos depois de ter falecido.
Já na primeira quinzena de Agosto de 2003, uma excepcional vaga de calor, que vitimou cerca de 15 000 pessoas em França e mais de 2000 em Portugal – num conjunto de 35000 no continente europeu – evidenciara a tripla vulnerabilidade física, social e sanitária da população idosa.
Em Portugal, entre 1971 e 2015, o número de pessoas com mais de 65 anos quase triplicou, passando de 836000 para 2100000. No mesmo período, a esperança média de vida subiu de 66,8 para 80,6 anos O envelhecimento acentuado da população não se tem, todavia, traduzido em medidas efectivas de protecção dos mais velhos.
Ainda em 2015, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calculava que o nosso país tinha uma das mais baixas taxas de quadros formais especializados no acompanhamento desta faixa etária (0,4 trabalhadores por cada 100 idosos). Ou seja, cerca de 90% dos idosos não tinha então acesso a serviços continuados de qualidade.
Na sequência da mediatização de casos que têm vindo a escandalizar a opinião pública, uma proposta de criminalização do abandono dos idosos foi recentemente levada à Assembleia da República. Acabou por ser chumbada pela maioria parlamentar com a promessa de apresentar um pacote de medidas para melhorar as condições de vida dos mais velhos.
Ninguém contesta a necessidade de renovar as políticas públicas, mas todos aqueles que trabalham no sector sabem quão instável tem sido o financiamento das já existentes apesar do recurso intensivo aos fundos comunitários. O dispositivo jurídico não resolve tudo.
É preciso haver, entre outras coisas, condições para fazer cumprir a lei. A produção legislativa não é uma varinha mágica. É preciso haver meios humanos, estruturais e financeiros apropriados.
Mas precisamos sobretudo de humanizar a sociedade. Reza a famosa sentença de Sartre que “o inferno são os outros”. O que poucos dizem é que citação da peça de teatro Huis clos(1943) não é tanto uma denúncia duma perversidade estrutural da natureza humana, mas uma chamada de atenção para a necessidade de relativizar a imagem e o discurso que os outros têm de nós.
E o olhar que temos hoje sobre os idosos diz muito de nós. São vistos como empecilhos a partir do momento em que são remetidos para a coluna das despesas sociais. A solidão do idoso – mas também a dos cuidadores informais – é um sintoma dum profundo mal-estar social. Aliás, hoje já se fala da solidão dos jovens… A solidão são também os outros.
Autor: Manuel Antunes da Cunha