A solenidade de Todos os Santos destina-se a celebrar quantos se encontram já na glória celeste, conhecidos ou não, canonizados ou nem por isso. Nela se recorda “a multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7, 9). É uma das maiores festas do nosso calendário litúrgico, bem como de outras confissões cristãs ou expressões católicas: as Igrejas Luterana e Anglicana celebram-na também a 1 de novembro, ao passo que as Igrejas Ortodoxa e Católica Oriental a celebram no domingo a seguir ao Pentecostes.
A festa remonta ao século II da era cristã, procurando honrar os que haviam sido martirizados por causa da fé, ao mesmo tempo que lhes era pedida intercessão junto de Deus. A comemoração regular começou quando, a 13 de maio de 609 ou 610, o Papa Bonifácio V dedicou o Panteão romano a Maria e aos Mártires. A data da celebração foi mudada para 1 de novembro, dia em que o Papa Gregório III (731-741) dedicou uma capela, em Roma, a Todos os Santos. Não se sabe, ao certo, a razão da mudança, mas pode ter a ver com o facto de, à data, se comemorar, na Inglaterra, uma festa parecida: o Samhain. Acreditava-se que, nesta época do ano, as almas dos mortos retornavam a suas casas para visitar os familiares, buscar alimento e aquecerem-se à lareira. Numa tentativa de cristianização desta festa popular, que coincidia com o início do inverno para os povos celtas, a Igreja sobrepôs-lhe a celebração de Todos os Santos, que o Papa Gregório IV, em 835, declarou como festa universal.
A Comemoração dos Fiéis Defuntos (outrora conhecida como Dia de Finados) lança as suas raízes num costume dos cristãos do século II: visitar os túmulos dos mártires e aí rezar pelos falecidos. O fundamento bíblico para tal procedimento encontra-se em Tb 12, 12; Jb 1, 18-22; 2 Mac 12, 43-46; Mt 12, 32. No final do séc. X, Odilo de Cluny pedia aos seus monges que orassem pelos mortos e, no século XI, os Papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) ordenaram às comunidades que dedicassem um dia aos mortos. Só no século XIII essa data passa a ser oficialmente celebrada no dia a seguir à solenidade de Todos os Santos, 2 de novembro.
Em síntese, e para usar uma terminologia clássica, podemos dizer que a Igreja peregrinante (nós que por cá nos encontramos) celebra, no primeiro dia de novembro, a Igreja triunfante (os que já se encontram na glória celeste) e, no segundo, a Igreja purgante (os que ainda se purificam para tal). Se bem observadas, estas celebrações são uma das expressões máximas e mais felizes da doutrina cristã da comunhão dos santos (união espiritual de todos os cristãos, vivos e mortos).
Por influência da cultura anglo-saxónica, de há uns anos a esta parte, começou a celebrar-se, por cá, na noite de 31 de outubro, o Halloween (contração do termo escocês All Hallows’ Eve, que significa “véspera de Todos os Santos”), agora mais conhecida como “festa das bruxas”. Sem qualquer tradição entre nós (da nossa tradição é o “pão por Deus”, que quase deixamos morrer), encontra muita resistência entre os católicos mais esclarecidos, por se tratar de uma festa de origem pagã. Concordo com isso, dado que esse é dia de celebrar os santos e não de chorar os mortos e, menos ainda, lembrar as bruxas. Contudo, num apelo à coerência, não posso deixar de questionar as romagens aos cemitérios, no dia 1 de novembro. A razão invocada é a mesma que leva lá milhares de pessoas, nesse dia: é feriado e, por isso, há mais disponibilidade para tal. Compreendo, mas não aceito e ouso questionar: não estará a Igreja a contribuir para uma confusão indesejável? Não será de fazer a romagem ao cemitério no dia próprio, o dos Fiéis Defuntos, ou mesmo deixá-la para algum dos domingos do mês de novembro?
Parece-me que, de forma inconsciente, estamos a contribuir para aquilo que, na cultura popular, já acontece: no dia 1 de novembro, já poucos celebram os santos (apenas os que participam na Eucaristia), mas quase todos choram os mortos (por razões diversas, quase ninguém se dispensa de ir ao cemitério). Quando se dá ao dia 1 a coloração e a finalidade do dia 2, o primeiro quase passa despercebido. Perde a celebração festiva da santidade e da vida e ganha o choro dos mortos, muito ao estilo dos ancestrais cultos pagãos.
Autor: P. João Alberto Correia