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Celebração, sufrágio e reflexão

Novembro começa com a Solenidade de Todos os Santos e continua com o sufrágio pelos que já morreram. Junta-se ainda a reflexão sobre o caráter frágil e fugaz da nossa existência. O sufrágio pelos mortos é sinal de que se acredita na vida para além da morte e na comunhão dos santos (a fé une-nos aos que já partiram e é na oração que exprimimos esta convicção). A reflexão sobre o caráter frágil e fugaz da existência humana é cada vez mais necessária, num tempo em que a ciência e a técnica tendem a esconder e mascarar a evidência do fim da vida terrena ou mesmo convencer-nos de que a morte poderá vir a ser eliminada.

É sugestivo que Novembro seja também o mês em que as folhas caem e a natureza se reduz ao silêncio de uma aparente inatividade. Bem sabemos que, no recolhimento e no silêncio do inverno, prepara-se uma vida nova que, na primavera, há-de manifestar-se.

Sem perder o realismo de que “há um tempo para nascer e um tempo para morrer” (Sir 3, 2), é nossa convicção de que o tempo em que por cá estamos é a primeira etapa de uma vida que continua no além da morte. No outono em que se vai transformando a nossa existência e face à invernia da partida, acreditamos na primavera da ressurreição. Não será por acaso que a Páscoa é celebrada quando a natureza explode em vida nova!

Perante os círios, as flores e as muitas pessoas que enchem os cemitérios, neste início de novembro, fica-nos, por vezes, a impressão de que, por lá, se choram os mortos como se estivessem mesmo mortos... e para sempre! Parece que fazemos dos cemitérios um hino à morte (apesar de as flores darem sinais de vida!) e, por vezes, uma feira de vaidades onde se exibem os vivos que até já aceitam a “cultura da morte”. Não será disso expressão a eutanásia que, por estes dias, se discute?

Ninguém tem o direito de duvidar dos sentimentos de cada um em relação aos seus defuntos. Sabemos, por experiência própria, que se sente a falta deles e que a ausência física faz sofrer. Mas também acreditamos que as lágrimas ajudam a ver mais longe e formulamos três questões que podem levar-nos à reflexão.

Novembro destina-se a chorar os mortos ou a celebrar os vivos? Formulada a questão de outro modo, acreditamos realmente no que, a este respeito, professamos no Credo: “creio na ressurreição dos mortos e na vida do mundo que há-de vir”? Não será até que derivamos para crenças (p. ex., a reencarnação) estranhas à fé cristã ou para a ausência delas (a morte como o fim de tudo)?

Procuramos ser coerentes e sinceros na expressão dos nossos sentimentos? Para que não aconteça de chorarmos e sufragarmos aqueles de quem, nesta vida, nos esquecemos. A acontecer, estaríamos a dar espaço a uma refinada hipocrisia.

Cuidamos daqueles que nos estão confiados, valorizando e defendendo a vida? Só assim seremos pessoas vivas a celebrar a vida e não gente morta a chorar a morte!

As respostas cabem a cada um, mas a reflexão é pedida a todos. Os cemitérios ajudam-nos a evocar a memória dos que nos precederam. Por isso, mais do que campa, jazigo ou sepultura, o lugar em que alguém está sepultado constitui um verdadeiro memorial. E, perante um memorial, impõe-se-nos o respeito e o silêncio.

O mês de novembro deveria suscitar em nós não tanto a saudade dos mortos, mas a certeza de que eles continuam vivos... e não apenas nas memórias que deles guardamos! Acreditamos que, em Deus, celebram connosco a vida e desafiam-nos a crer que, com a morte, nada termina. Talvez seja mesmo por isso que um mês tão intensamente dedicado ao sufrágio pelos fiéis defuntos comece com a Solenidade de Todos os Santos.

*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)


Autor: P. João Alberto Correia
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2 novembro 2020