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Carta a um amigo que não gosta do Natal

Meu caro Zé: De hoje a seis dias será uma vez mais Natal; mais um Natal do teu descontentamento. E isto porque sei que tens associadas ao Natal lembranças dolorosas de acontecimentos marcantes da tua vida; e talvez por ser uma festa linda, linda demais é que te ficaram a doer profundamente como velhas cicatrizes, mas sempre transformadas em feridas ainda vivas, frescas e verdes, embora dum tempo já longínquo. Primeiro, foi na guerra em África que viveste um Natal tropical medonho, um Natal sem aconchego, sem ternura, sem o calor do lar e com uma ração de combate como única ementada da Consoada; e sentiste, assim claramente, rastejando como réptil assustado e indefeso por entre o capim e debaixo do fogo da metralha inimiga, que o Natal estava longe, muito longe; para além do mar e da dor. E, hoje, mesmo já a muitos anos de distância, as feridas dessa ausência ainda doem e sangram, enquanto não desenvencilhares definitivamente os nós e os laços dessas recordações; se é que, alguma vez, algum dia o conseguires, dada a fixidez e força que elas mantêm. Depois, há pouco mais do que cinco lustros, talvez tenha sido o teu pior Natal; é que a tua mãe doente, gravemente doente, olhava a mesa da Consoada já posta e sem lhe poder dar o tal toque mágico que todas as mães sabem dar; e, mais doloroso ainda, sem poder compartilhar com a família por cujos rostos perpassava, apenas um laivo de alegria breve, fluída e piedosa; embora tu a sofreres já o espectro da sua morte que adejava pelos cantos da casa como uma mórbida e inexorável realidade. Houve batatas, bacalhau, mexidos, aletria, rabanadas, sonhos, prendas para as crianças; mas, tais iguarias te caíram como pedras no estômago; e doeram-te mais ainda do que o silvo das balas a balizarem-te a cabeça e o ribombar dos morteiros a troarem na paisagem imensa e medonha numa ameaça fatal, nesse Natal em tempo de guerra. E, ainda já mais recentemente foi teu pai, também numa noite de Natal, encolhido na cama, resignado como só ele sabia ser, mas imensamente triste num olhar parado e distante, à espera, como ele dizia, da sua hora; e tu a dar-lhe força, a dizer-lhe que não, que ainda vos fazia falta, muita falta, mas, tão-só, como puro e possível lenitivo ou mentira piedosa. Todavia, caro Zé, houve batatas, bacalhau, mexidos, aletria, rabanadas, sonhos e prendas para as crianças; mas, dificilmente tais iguarias te passaram pela garganta, porque ali ao pé, bem ao pé um pedaço de ti, um bom pedaço agonizava e lentamente se despedia da vida num até logo imensamente doloroso e inexorável. Agora, com o Natal à porta, as ruas a regurgitar de gente sobraçando embrulhos e ilusões, os netos a esborrachar os narizitos nas montras inflamadas de luzes multicolores e brinquedos de sonho, até podia ser um Natal mais ou menos diferente, mais ou menos capaz; mas, com a tua esposa numa cama de hospital à espera de uma mastectomia ao seio esquerdo é o mundo inteiro que desaba sobre a tua cabeça, dos teus filhos e netos; e, de novo, o Natal marcado está pelo ferrete da fatalidade e do infortúnio, sem batatas, bacalhau, mexidos, aletria, rabanadas, sonhos e prendas para as crianças, porque a alma da casa, a fada do lar está ausente e num sofrimento atroz. É, então, que à luz destes transes lancinantes da vida sei que os teus Natais tem sido vividos entre magoados episódios e alegrias breves, fluídas e piedosas; e, embora a mesa posta, a família reunida e o frenesim das crianças desfazendo embrulhos e ilusões, sempre te acodem à lembrança o drama dos Natais passados. Depois, também o que vai pelo mundo te aflige: as guerras, as migrações, a fome, a angústia, o medo; e, então, os milhares de crianças que, minuto a minuto, vão morrendo, pelo mundo fora, de fome, de doença por falta de remédios, vítimas de guerras e de abandono te trazem angústia e consternação. Ao menos se houvesse a certeza de mais justiça social, mais igualdade, mais solidariedade e fraternidade entre os homens podia ser Natal todos os dias; só que tais valores não fazem parte das preocupações da maioria dos homens devido ao egoísmo, ao individualismo, ao hedonismo e ao relativismo que os anima. Não te desejo pois, caro Zé, um bom Natal, porque sei muito bem como ele será: todavia, quero que saibas que estou contigo: no teu sofrimento, nas tuas amargas lembranças, nas tuas angústias de hoje a seis dias; e como sempre estou. Um abraço de amizade e até sempre.
Autor: Dinis Salgado
DM

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19 dezembro 2018