Alguém comentava, com certa razão, que o Carnaval e a Quaresma são um par de espaços de tempo humanos contrastantes. Cada um tem um determinado pendor e o seguimento da Quaresma ao primeiro parece denotar que houve excessos comportamentais que precisam de ser penitenciados duma maneira mais firme e objectiva.
No entanto, encarar os dias quaresmais como um tempo em que o ser humano deve reparar os desacatos de conduta que viveu no Carnaval é esquecer, por um lado, que todas as situações da nossa vida devem ter conta, peso e medida em relação ao que fazemos. Diversão e alegria não são necessariamente desmedidas e disparatadas e, muito menos, pecaminosas, desde que o procedimento não esqueça a dignidade que deve presidir ao que fazemos.
É notório que o tempo carnavalesco conduz com frequência a exageros no modo de proceder na vida e até a pensar que o que nele se pode fazer não é moralmente recomendável, pelo que reclama uma penitência que anule as suas consequências. E lembramo-nos imediatamente da Quaresma como tempo reparador dos desmandos cometidos no Carnaval.
Alguma razão pode ter esta atitude. Contudo, o comportamento humano deve sempre corresponder à nossa condição de seres racionais, dotados de vontade e de afectividade. Todos estes factores determinam que possamos agir com liberdade, fazendo o que queremos, mas assumindo a responsabilidade dos efeitos consequentes da nossa conduta. Se ela não atesta a dignidade que todo o acto humano deve ter, decerto que é condenável.
Nesta ordem de ideias, nem o Carnaval é necessariamente um tempo desorbitado, nem a Quaresma uma consequência dos desmandos dos foliões. Faz-se muita asneira moral nestes dias em que, como diz o povo, “no carnaval ninguém leva a mal”... É certo. Mas, atenção, se uma situação me convida a comportar-me mal, não sou obrigado a fazê-la e devo tomar os respectivos cuidados para a evitar.
Não se pense, assim, que o Carnaval é uma realidade humana em si mesma má, porque a diversão faz parte da nossa vida, desde que a encaremos com os cuidados que ela exige. O mesmo se poderia dizer de uma bebida alcoólica: se a tomamos com regra, ela faz-nos passar um momento agradável e nada condenável; se abusamos na quantidade, sofremos as consequências que todos conhecemos e, certamente, condenamos. Também não se pense, como atrás referimos, que a Quaresma é um tempo de penitência provocado pelos desmandos carnavalescos. Não é verdade e encará-la deste modo simplório, é esquecer que os desaforos da conduta humana fazem parte do nosso dia a dia. Lembremos o dito: “O justo peca sete vezes por dia...”
Quando a Igreja, mesmo nos primeiros séculos da sua existência, recomendou que todo o cristão vivesse um tempo de penitência mais forte, que veio depois a concretizar-se nos quarenta dias da actual Quaresma, tem em conta a condição humana. E esta, apesar de toda a ajuda que a graça de Deus sempre oferece a quem a aceita, nem sempre a leva a ter uma conduta recomendável. O pecado humano, desde o primeiro casal que veio ao mundo, é uma constante da nossa conduta. Precisa de reparação, de penitência e de arrependimento, para obter o perdão. Deus criou-nos para a felicidade celestial e esta é incompatível com o pecado, que fechou as suas portas.
O amor divino pelo homem, porém, e o seu sentido de responsabilidade, levaram a que Deus encarnasse, na pessoa de Jesus Cristo, a fim de que nós pudéssemos aspirar de novo à alegria eterna. Para resgate dos nossos pecados, o filho de Maria Santíssima, além de ter preparado, dum modo especial, os discípulos mais próximos – os Apóstolos – para continuarem a sua obra e mensagem de salvação na Igreja, ofereceu a sua vida na Cruz do Calvário. Depois, venceu a morte, ressuscitando e abrindo as portas do Céu a todas as almas que esperavam ardentemente esse momento redentor no chamado “Seio de Abraão”.
A Quaresma leva-nos a reflectir com insistência nesta prova do amor de Deus, que é o oferecimento da vida de Cristo para a nossa libertação do pecado e a possibilidade de ascender ao reino dos Céus. E como Lhe custou ser Redentor. Lembremos a oração de Jesus, pouco antes de ser preso, no Jardim das Oliveiras: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; mas não se faça a minha vontade, mas a tua” (Mt. 26, 42).
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva