Compreender a nossa plenitude implica olhar para nós como encontrando-nos imersos no processo da vida, sendo a morte um instante natural do processo de viver essa mesma vida, que não acaba, não, porque ela se renova permanentemente na própria natureza. Uma visão mais pacificadora da morte implica necessariamente um correlato de vida, o que por sua vez facilita vivenciar qualquer perda. Os complexos processos que envolvem o luto nem sempre se mantêm dentro de uma determinada dinâmica de coerência. Abrem-se espaços de profunda oscilação entre o conhecimento tácito e a experiência consciente. Partes do processo chegam, inclusive, a vivenciar-se como alheios, alterando-se assim a perceção do processo como um todo, acrescentando sofrimento a uma particular experiência já por si dificílima (Bahamondes & Modernell, 2017).
O doente em fim de vida faz um luto de si mesmo, um juízo sobre a sua própria vida e sobre as escolhas feitas, elabora um luto antecipado pela perda de quem ama, ao mesmo tempo que deixa em aberto a reflexão da finitude do outro. A maneira como a doença é vivenciada e como se desenvolve o processo de morrer é multifatorial: como foi dada a notícia, o tempo de que se dispõe, qual o estado das suas relações significativas, qual a capacidade de trabalhar a própria ansiedade e o stress, entre outros. O medo da morte e a crescente notoriedade da sua proximidade confundem-se com o quotidiano, gerando emoções que abrem espaço a novas atitudes que, para muitos, culminam numa serena aceitação (Azevedo, 2016).
Quem proporciona companhia, cuidados e atenção à pessoa em fim de vida – sejam estes cuidadores formais ou informais – deve saber que o cenário a enfrentar vai depender, em grande medida, de quem e como foi dada a notícia. Quando nos confrontamos com um diagnóstico grave, incurável ou terminal, deparamo-nos com um momento de crise, de oscilação emocional, afetivo e, concomitantemente, de grandes decisões e indecisões. Aliás, este impacto não atinge tão só ao doente, o sofrimento em quanto experiência humana, relacionado com doenças graves, encontra ressonância no círculo íntimo do doente – família e amigos – e inclusive nos profissionais de saúde.
Ponderar a nossa finitude implica olhar para nós desde a perspetiva daquilo que tenhamos vivido. Uma maior consciência da vida manifesta-se perante os nossos olhos quando olhamos para a morte. Nem sempre valorizamos o que temos, o que fazemos, o que somos, com quem partilhamos os nossos dias, nem o nosso papel nas relações que vamos estabelecendo no ato do viver e que acompanham diariamente a nossa particular maneira de experimentar-nos. Damo-nos conta do mais importante quando já passou. Entretanto, esgotamo-nos nas ilusões dos futuros que nunca chegam e deixamo-nos consumir por ressentimentos do passado, esgotados já no tempo, distraídos de um presente, sempre um, que nos olha nos olhos desejando não passar. A morte assusta e assombra as relações humanas, por isso é geralmente dissimulada; ela não quer ferir as sensibilidades (Oliveira, 2016). Nas leis da natureza nada se perde, tudo se transforma e renova. Se a morte fosse «o fim» e não «um fim», estaríamos perante um inevitável aniquilamento que por sua vez negaria os indiscutíveis ciclos da vida.
* Licenciado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa. Psicoterapeuta pelo Centro de Terapia Cognitiva Pós-racionalista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Azevedo, M. (2016) Horizontes do morrer. Do luto, p. 65 – 98. Braga: Jesuíno, J. & Oliveira, C. (org.). Alêtheia Ed.
Bahamondes, J. & Modernell, P. (2017) Vivir la propia muerte – Un caso de duelo sobre sí mismo. Psicooncologia II. Santiago de Chile: Nueva Mirada Ed.
Oliveira, A. (2016) Emoções (des) conhecidas – Os mais jovens face à morte e ao luto. Do luto, p. 33 – 64. Braga: Jesuíno, J. & Oliveira, C. (org.). Alêtheia Ed.
Autor: Pável Modernell
Caminhos do luto – correlatos do viver
DM
28 julho 2018