1. Segundo o jornal 7Margens, o presidente da Conferência dos Bispos da igreja católica francesa, a partir da dinâmica de mediação e indemnização das vítimas de abusos sexuais de crianças por padres (há quem aponte entre 200.000 a 300.000 casos), a que a lei do celibato não é alheia, anunciou, no princípio de Novembro, a decisão de iniciar um trabalho interno de “reforma profunda” da igreja como instituição. Essa reforma visa um vasto programa de governação das práticas eclesiásticas e eclesiais, tanto ao nível das dioceses como da igreja em França no seu todo. Esse trabalho seria desenvolvido “em clima sinodal”, através de uma série de grupos de trabalho que irão reflectir sobre diversos aspectos da governação diocesana ou nacional, dos quais sairão propostas a apresentar aos bispos. Estes grupos serão compostos por leigos e sob a orientação de um coordenador leigo e eles próprios vão estabelecer a sua agenda de trabalho. Tudo isto para ser feito antes das assembleias plenárias previstas para março e junho de 2022. Ao mesmo tempo, os bispos recomendam que seja assegurado que nos grupos de trabalho seja ouvida a voz de todos os que queiram colaborar, dos trabalhadores, dos pobres, dos jovens e mesmo das crianças… Este processo sinodal seria prolongado até 2023, data para o momento de tomada das grandes decisões. Os bispos afirmaram ainda que pretendem auscultar mais o Povo de Deus e partilhar mais o processo de construção das decisões a tomar, recorrendo mais sistematicamente ao aconselhamento e competência dos leigos e de outros membros da sociedade. Mostram-se também abertos à ajuda dos leigos para poderem acompanhar os padres e diáconos nas dioceses (em termos de dinâmica afectiva, este item merece uma reflexão especial).
2. É um projecto amplo e corajoso que aponta para uma progressiva mobilização dinâmica da igreja, em França e para uma redescoberta da sua verdadeira essência, que é ser Povo de Deus, como lhe chamou a constituição do concílio Vaticano II “Lumen Gentium”, isto é, os baptizados que professam a fé em Jesus. Até ao concílio Vaticano II, a expressão “igreja” era formalmente entendida (e para muitos ainda é…) como a hierarquia religiosa, isto é, os bispos e os padres. A votação final do documento conciliar “Lumen Gentium” foi um compromisso entre estas duas correntes representadas no concílio: a mais conservadora e tridentina, entendia que se devia sobretudo valorizar a hierarquia religiosa, que representa e decide em nome da igreja; e a outra, mais alinhada com a realidade actual e a História da igreja primitiva, defendia que a igreja é essencialmente o Povo de Deus, a comunidade dos baptizados e crentes, com as suas funcionalidades e serviços. A tradição do chamado sacerdócio ministerial como entidade ontológica é exógena ao ao cristianismo e divide artificialmente o Povo de Deus em duas categorias: clero e leigos, algo que não se coaduna com a herança evangélica. Que haja líderes carismáticos na fé, sim, mas apenas como um serviço de apoio à comunidade e não necessariamente vitalício.
O texto original proposto à assembleia conciliar foi muito discutido, houve cerca de 4000 propostas de emendas e, só depois de muitas modificações, se chegou a um consenso, que se saldou, no texto final, num compromisso entre essas duas correntes, ficando aprovado, logo a seguir ao capítulo básico sobre o Povo de Deus, um capítulo (n.º 3) dedicado à constituição hierárquica da igreja e depois um outro (n.º 4) dedicado aos leigos, mantendo-se assim a divisão artificial entre sacerdotes e leigos… Mesmo sabendo-se que Jesus nunca foi sacerdote nem nunca se identificou com os sacerdotes do Judaísmo; pelo contrário, foi acusado por eles de ser contra a Lei de Deus e condenado, a seu pedido, pelo poder romano.
3. É importante que se lembre que nessa discussão conciliar nunca esteve em causa, como também hoje não está, que todas as comunidades precisam de um líder para as orientar, tal como Jesus fez ao nomear Pedro como líder do grupo dos seus discípulos. O que estava (e está) em causa para os defensores da linha tradicionalista era manter o estatuto especial e ontológico do clero, como se fosse algo de transcendente e sagrado e não apenas uma função de serviço. Na igreja primitiva, era muito usado o nome de presbítero (isto é, o mais velho, o mais experiente e respeitado pela comunidade) para designar a pessoa que desempenhava essa função de serviço à comunidade. E havia bispos, presbíteros e diáconos para desempenhar essas funções; mas, sem ordens sacras, apenas uma função de serviço. É importante ter consciência social que, enquanto cada comunidade de cristãos não se sentir corresponsável e participativa na vida própria da sua igreja, tenderá a desinteressar-se e a alhear-se progressivamente dela. Como tem acontecido. É assim a natureza humana… Assim procediam os grupos de crentes (pequenas comunidades ou igrejas) que o apóstolo Paulo ia fundando, por onde passava: iam-se organizando e reuniam-se na casa de um membro desse grupo ou comunidade por eles escolhido (nessa altura ainda não havia templos), homem ou mulher e aí celebravam a eucaristia, normalmente presidida pelo dono ou dona da casa. Paulo escrevia cartas doutrinais e pastorais a essas comunidades cristãs e enviava, quando possível, algum discípulo mais experiente para os confirmar e manter unidos na fé. Com o passar do tempo, as formas organizativas da igreja foram mudando, sobretudo a partir da oficialização do cristianismo como religião oficial do império por Teodósio, através do Édito de Tessalónica, em 380 d.C. Hoje, passados 2000 anos e face ao estado actual das coisas, há muita coisa que precisa de ir sendo reformada para que a igreja volte a ser uma comunidade viva, participada e dinâmica de fé, onde todos são iguais e corresponsáveis, embora com funções diferentes.
Autor: M. Ribeiro Fernandes