Tinha pensado dedicar o texto deste mês à recente aprovação, entre dois jogos da seleção nacional, da lei da eutanásia pela Assembleia da República. Pensando melhor, fica para outra oportunidade, quando o processo legislativo estiver concluído. Escrever sobre temas que polarizam de tal forma a opinião pública em dois campos entrincheirados – independentemente do número de partidários em cada um dos lados – requer um certo distanciamento crítico que a agenda mediática não tem por hábito favorecer. Assim sendo, estas linhas versam sobre um acontecimento incomensuravelmente mais ligeiro, mas que não deixa de ser sintomático do narcisismo acrítico e da confusão institucional que se instituiu como grelha de leitura das nossas sociedades. O assunto é, então, outro…
Na noite da qualificação da Argentina para a final do Campeonato do mundo de futebol, uma jornalista daquele país entrevistava a estrela maior da “sua” seleção. Sofia Martinez Mateos rematava assim a flash-interview a Leonel Messi: “A última coisa que te vou dizer não é uma pergunta. Só quero dizer que vem aí uma final e, embora todos queiramos ganhar, quero dizer-te que, além do resultado, há algo que ninguém te vai tirar: és o orgulho de todos os argentinos. Não há criança que não tenha a tua camisola, seja a original, improvisada ou imaginária. Tu marcaste a vida de todos. E isso, para mim, é maior do que qualquer Campeonato do Mundo. Isso ninguém vai tirar. É um agradecimento por um momento de felicidade tão grande que proporcionaste a tantas pessoas. Na verdade, espero que o leves no teu coração porque acho que é mais importante do que uma Campeonato do Mundo. E tu já tens isso, então obrigado, Capitão.”
A tirada difundida em direto num canal de televisão argentino (ESPN) depressa se tornou viral. Por cá, muitas vozes aproveitaram para acusarem os jornalistas portugueses de não terem apoiado com a mesma veemência o nosso Cristiano nacional. No meu caso, servirá antes de exemplo para ilustrar aos estudantes de jornalismo o que não se deve fazer. Diz o ponto 1 do código deontológico da profissão (aprovado em outubro de 2017) que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”. Por muito popular que possa ser, numa entrevista, não cabe nunca ao repórter emitir juízos de valor. Que os jogadores se queixem de falta de apoio da imprensa, ainda se pode entender. Que a opinião pública ache que um jornalista possa vestir a camisola da seleção quando estiver em funções, já indicia fortes níveis de iliteracia nas esferas mediática e da cidadania.
No decorrer do torneio que amanhã finaliza no Catar, a cobertura noticiosa – e também a postura de parte da nossa classe política, mas essa é outra história – deixou a desejar. É só desporto, dirão alguns. Não é por tratar-se de futebol que se podem pontapear as regras elementares do jornalismo. Hoje é futebol, ontem foi política ou educação, outro dia será a propósito de ecologia ou economia e por aí adiante. Todos devemos ter uma opinião pessoal sobre os mais diversos assuntos. O jornalista não deixa de ser um cidadão com as suas convicções. A objetividade pura não existe. Não pode é prevalece-se do seu estatuto socioprofissional para impor uma leitura da realidade sobre o que não lhe compete, nem deve desperdiçar tempo de antena com interlocutores que não dominam o assunto em causa.
Desde “notícias” sobre o que pensa Lili Caneças do rendimento de CR7, passando por exercícios de leitura labial a propósito do que terá ou não dito um atleta em campo ou ainda a difusão de rumores a propósito do estado de espírito de fulano ou sicrano, até à divulgação quase diária das publicações dos familiares ou namoradas de jogadores nas redes sociais, muitas vezes se ultrapassaram as fronteiras das boas práticas nestas últimas semanas. Apetece dizer, cada macaco no seu galho…
Autor: Manuel Antunes da Cunha