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Brincar na rua

Ora, sendo o brincar uma atividade completa em que elas aprendem a decidir, a negociar, a colaborar, a pensar e a criar, ao impedirmos as crianças de brincar, estamos a ocasionar-lhes danos psicológicos, somáticos e sociais, profundos e irreversíveis; e, contrariando, assim, a natureza intrínseca da criança, estamos a tratá-la como o homúnculo de Hobbes. 

Nos meus tempos de criança brincar na rua era o nosso supremo gozo e enleio; a ponto de, quando chegava a hora das refeições e, após, vários chamamentos e advertências, a mãe tinha de usar o chinelo para nos remeter a casa; e, cumprido o ritual da refeição, à pressa e a resmungar, lá regressávamos à rua para continuarmos a brincadeira interrompida. 

Todavia, já os meus filhos brincavam menos na rua, mas ainda frequentemente o faziam; e a rua era, assim, o laboratório das nossas experimentações, competências, afirmações, descompressões e limitações; sobretudo, o campo de afirmação do nosso eu, da nossa personalidade interpessoal e social e de ajustamentos, coações, definições e cumprimento de regras inerentes ao grupo. 

Pois bem, os tempos mudaram muito e a disponibilidade, mentalidade e cultura das pessoas igualmente acompanharam tal mudança; e, então, os meios e processos lúdicos é que deram mesmo uma volta de cento e oitenta graus, sobretudo na facilidade da sua aquisição e utilização; e se nós facilmente fazíamos os nossos próprios brinquedos (em arame, madeira, papelão, lata), as crianças de hoje já os adquirem prontos a ser utilizados e demasiado atraentes, funcionais, absorventes e criadores de dependências. 

Ora, a diminuição e quase extinção da atividade lúdica, sobretudo em grupo, das crianças é um sinal, triste sinal dos tempos que vivemos; e que têm nas tecnologias audiovisual e digital, não um precioso auxiliar educativo, mas, antes, um meio triturador e manipulador da natureza infantil de que os educadores (pais e professores) nem sempre se servem favoravelmente para a formação e educação das crianças e jovens; porque nem os pais se devem demitir da educação integral dos filhos, nem a escola praticar, apenas, o processo de ensino/aprendizagem. 

Não vamos só por isso diabolizar os meios audiovisuais e digitais que fazem parte, sem dúvida, do mundo lúdico das crianças dos nossos dias; mas temos, quando muito, de concluir pela moderação, equilíbrio e opções na forma de os utilizar; porque as crianças não podem ser escravas desses meios de diversão e aprendizagem, mas, concomitantemente, estes é que devem ser escravos delas, usando-os quando necessário, com parcimónia, racionalmente; depois, estes meios auxiliares de informação e comunicação fazem com que as crianças percam em motricidade e coordenação motora o que ganham, somente, em destreza manual. 

Em conclusão, brincar (na rua, no jardim, no recreio da escola, em casa) cria à criança espaços de liberdade, criatividade, imaginação e espontaneidade; e, hoje, tristemente se vê mais pessoas a passear cães pelas ruas do que a passear crianças; e, então, ver os pais a brincar com os filhos ou a vê-los brincar com o grupo de vizinhos, colegas ou amigos já passou à história; e, assim se pode catalogar como uma atividade lúdica pré-histórica. 

É ou não é? 

É. Então, até de hoje a oito.

 

Autor: Dinis Salgado
DM

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31 maio 2017