Em 13 de Abril findo, a Assembleia da República (AR) aprovou as alterações à lei da identidade de género, entre as quais se destaca a baixa para 16 anos da idade mínima para mudar de sexo no Registo Civil e o fim da obrigatoriedade da apresentação de um relatório médico.
O respectivo projecto de lei foi aprovado à tangente – 109 votos a favor (BE, PAN, PS, PEV e a deputada social-democrata Teresa Leal Coelho) e 106 votos contra (CDS/PP e os restantes 88 deputados do PSD), com a abstenção do PCP, por discordar da dispensa do aval médico –, sendo que a contabilização dos votos foi feita globalmente por bancada, isto é, contando o número total dos deputados eleitos por cada grupo parlamentar e não os realmente presentes no plenário.
E, por isso, a minha primeira nota sobre este diploma versa sobre a formalidade da sua votação e visa demonstrar a discordância relativamente ao modelo adoptado. Em matéria tão complexa, quer do ponto de vista social quer ético, não se compreende que o parlamento dispense a votação nominal, presumindo e contando os votos dos deputados ausentes.
Na verdade, embora seja prática regimental observada no plenário ou nas comissões da AR em procedimentos legislativos e regulamentares sobre matérias de reduzida importância ou de pouca complexidade, é inadmissível que, num assunto de tão grande melindre e de consequências jurídicas de grande alcance, como são as relativas à identidade das pessoas, se permitam votações virtuais, com base em presunções, contabilizando-se os votos dos ausentes ou quiçáde algum deputado falecido na véspera da votação e ainda não substituído, como bem alvitrou José Ribeiro e Castro.
Entrando agora na apreciação da substância das mencionadas alterações legislativas, afigura-se-me censurável a redução para 16 anos da idade mínima para pedir a mudança de sexo, mesmo com o consentimento paterno.
E isso porque é questionável a capacidade de discernimento de um jovem dessa idade para, de forma reflectida e responsável, tomar uma decisão tão importante e com tantas e tamanhas implicações pessoais (físicas, psíquicas, sociais e jurídicas) como é a da mudança de género.
Aos 16 anos, falta ao comum dos adolescentes a maturidade emocional e sexual que lhe permita avaliar plenamente as consequências de tal mudança e determinar, livre e conscientemente, a sua vontade de acordo com essa avaliação.
Mas mais censurável ainda parece-me a determinação de acabar com a obrigatoriedade de um relatório médico que instrua e abone o pedido de mudança de nome e de sexo, retirando-lhe a imprescindível base científica.
Para os autores ou promotores desta simplificação processual, a opção pela mudança de género é apenas uma questão de identidade, tal como a sente cada indivíduo, que não está nem deve estar limitada pela anatomia/biologia, pela psicologia ou por qualquer outra ciência: basta que as pessoas sintam uma identificação forte e persistente com o género oposto, não se encaixando na tradicional dicotomia homem-mulher; que considerem que tal incongruência lhes causa incómodos, problemas ou sofrimento; e que afirmem a sua vontade de mudar de nome e, consequentemente, de sexo.
Ora, com todo o respeito por quem assim pensa, a disforia de género que justifica a mudança legislativa em apreço é reconhecidamente um transtorno de personalidade ou um distúrbio patológico de identidade que, como tal, está classificado por entidades internacionais da especialidade, como a Associação Profissional Mundial para a Saúde do Transexual, e consta de listas oficiais por elas elaboradas.
À luz deste padrão internacional, a inconformidade de género é insuficiente para, por si só, justificar o diagnóstico de síndrome de disforia de género. Torna-se essencial que essa inconformidade cause “sofrimento significativo” (traduzido, por exemplo, na combinação de ansiedade, depressão e irritabilidade) e um óbvio e significativo “comprometimento da capacidade funcional do indivíduo”.
Por isso é que os profissionais de saúde podem e devem ajudar os pacientes a avaliar o seu estado e a tomar a decisão de eventual mudança de género.
Aceitar alterações de nome e sexo no Registo Civil apenas pela livre vontade de quem as pretende fazer e pelas vezes que entender não pode deixar de gerar a desconfiança dos cidadãos no sistema público registral, na medida em que abre a possibilidade de qualquer cidadão apagar o registo sobre o seu sexo natural e, assim, poder iludir terceiros de boa fé, privando-os do conhecimento das alterações efectuadas.
E não só: pode permitir abusos da lei da igualdade, relativamente a medidas de discriminação positiva, designadamente quanto ao sistema obrigatório de quotas para mulheres em listas eleitorais ou nos órgãos de gestão de empresas públicas.
Não está em causa que as pessoas com disforia de género sejam merecedoras de cuidados e de justiça. Mas a decisão do género não pode depender exclusivamente da decisão do próprio.
Se relegar para o plano cultural e ideológico os conceitos de masculinidade e feminilidade é por si só uma atitude perigosa, que desafia o papel fulcral da sexualidade humana na reprodução e multiplicação da espécie, prescindir da base científica na opção de identidade de género é brincar com coisas muito sérias.
Por este caminho ínvio que o parlamento escolheu trilhar, faz sentido continuar a registar o sexo dos cidadãos?
Entretanto, houve uma boa notícia: anteontem, o Presidente da República vetou o diploma em causa, devolvendo-o ao Parlamento, com a sugestão de previsão da obrigatoriedade do relatório médico para menores com mais de 16 anos.
Autor: António Brochado Pedras