twitter

Beneficiado ou prejudicado?

Recorrentemente emergem notícias sobre situações de alguma tensão entre os intervenientes do setor da Igreja católica e certas autoridades socio-políticas. Por vezes os casos já são ‘velhos’, a novidade estará na forma algo acintosa como aparecem… ao público. Noutros momentos assemelham-se mais a ‘tricas’ de relacionamento humano do que do âmbito institucional. Fosforescências regionais ou localizadas ganham projeção mais ampla porque surgem nas notícias nacionais.

Atendendo a questiúnculas que deambulam por aí, talvez seja um tanto conveniente fazermos um percurso sobre a autonomização (feita e/ou desejada) das realidades temporais para com as forças religiosas e também das de condição religiosa para com os serviços públicos/políticos/autárquicos.

1. O tempo de cristandade já passou. A sociedade não é mais cristã e os valores desta quase roçam a provocação quanto àquilo que era a influência da Igreja católica na condução de setores como a cultura e a educação/ensino, a saúde e a assistência social... que foram supletivamente assumidas pela Igreja como ações em favor dos mais necessitados, tendo sido vertidas em promoções do dito ‘estado social’, nos tempos subsequentes à segunda guerra mundial. O que ainda subsiste realizado pela Igreja quase é visto como atentado ao ‘estado-providência’, que algumas esquerdas querem impor a todo o custo e negligenciando a complementaridade mais correta, simples e articulada.

2. Na década de 50 do século passado surgiu a expressão ‘cristandade profana’, numa tentativa de articular o que ainda vinha da Igreja-sociedade. Alguns dos mentores, fautores e executores da vida política como que foram abjurando dos valores e critérios de índole cristã, tentando substitui-los por outros mais transversais, crepitando das lojas transnacionais e assaltando o poder mais ou menos democrático. Nalguns casos a Igreja é como que tolerada se estiver nas atividades (ditas) sociais – nos bairros problemáticos, nas situações de fronteira, numa espécie de interposto de distribuição de comida, de roupa ou gerindo casos mais ou menos marginais... com marginalizados, mal-cheirosos e quase sem solução.

3. Como estamos ainda longe de cumprir aquela máxima do Padre Américo de que cada paróquia (freguesia) cuide dos seus pobres! Estes, por vezes, são terreno propício para certos momentos políticos de aliciamento ou de promessas demasiado repetidas e sem cumprimento. Tirem os pobres de alguns trabalhos sociais e de assistencialismo e crescerá o desemprego sem qualificação... dos executores empregados. Como seria útil para todos e conveniente para com quem trabalha nestes setores que houvesse diálogo e não concorrência, cooperação e não preferências pelos da sua cor partidária, serviço desinteressado a quem precisa e não manipulação de quem é beneficiado.

4. Por uma questão de maior autonomia seria conveniente acabar com a presença de ‘autoridades civis’ em celebrações religiosas. Quem beneficia com tal exposição? Normalmente quem vem de fora, até pelo lugar de destaque que lhe atribuem. Na maior parte dos casos, pela não prática religiosa, os ‘convidados’ ficam em má impressão diante dos outros. Do mesmo modo que não se justifica que alguém do setor religioso tenha qualquer destaque no atos de natureza política, que esteja lá como cidadão na normalidade da sua participação. A distinção das águas traria mais automonia a todos e daria mais espaço de verdade nos relacionamentos instituicionais.

5. Quando houver clareza nas intenções e lealdade nas vivências – político (autarca ou que ocupe outro lugar de escolha) ou religioso (padre ou bispo) – não seremos confrontados com beneficiados nem prejudicados, pois cada qual só é aquilo que é, fazendo-se respeitar e respeitando. Por mim não quero nem pretendo ser beneficiado por ser quem sou ou pelo lugar que ocupo e tão pouco negligenciado por ninguém.


Autor: António Sílvio Couto
DM

DM

27 dezembro 2021