De Sófocles, genial dramaturgo grego (1.ª década do Séc. V AC), se dizia gostar de travar com os seus discípulos este vivo e cuidado diálogo:
– Mas. Mestre, nunca fizemos teatro?
– O mundo, efebos, é um imenso palco e a vida uma peça repleta de cenas e atos; todos fostes já, a vosso modo, atores – concluía o Mestre.
Ora, isto acontecia na primeira década do século quinto antes de Cristo o que nos leva a pensar, grosso modo, ser hoje a realidade muito diferente; todavia, dissecando a imprensa diária, falada ou escrita, mormente as redes sociais, encontramos e cada vez em maior profusão informação abundante que demonstra, à saciedade, continuarmos a viver num mundo de atores, sem dúvida, de excelentes atores.
Então, a vida política enxameada está de geniais atores – vendedores da banha da cobra, como bem diz o povo –, de charlatães vendedores de chás milagrosos ou de punções mágicas para a economia, os pantomineiros do vigésimo premiado ou dos relógios só com ponteiros e mostrador, os aprendizes de feiticeiro da sociologia... Eu sei lá.
Estou mesmo em crer que o nosso quotidiano está repleto de situações onde desempenhamos, milhentas vezes, papéis para os quais não estamos ensaiados e, muito menos, determinados ou designados; assim, ninguém poderá dizer, como os alunos de Sófocles, que nunca vestiu a pele de ator, uma única vez que fosse na vida, nem que fora simplesmente na situação banal do inquilino com a renda em atraso, do marido ausente do escritório a horas de expediente, do filho prendado a cheirar a tabaco de charuto ou cachimbo, do consolador de viúvas ou órfãos na solidão de velórios, do vizinho bisbilhoteiro no supermercado de bairro, do afortunado caçador coelheiro à mesa do café ou em autêntica ação cénica do noivo vigilante e trovador à espera da noiva atrasada à porta da igreja etc. etc. etc.
Mas, vejamos uma expressiva amostra do dia-a-dia de uma cosmopolita e barulhenta cidade, onde o papel de ator abunda.
(Palcos: a rua, o café, a casa; atores: o polícia, o automobilista, os amigos, a mulher do automobilista).
Primeira cena (muito dramática): junto a um automóvel mal estacionado e obviamente em infração, o polícia mira, remira, puxa do bloco e da esferográfica; o automobilista alertado para o que se está a passar, sai esbaforido do café, corre para o carro e entra em cena; é um ator digno de um drama Shakespeariano; suplica, implora, que tem mulher e dois filhos; e dramaticamente que a mulher é doente, um filho entrevado, a sogra no sanatório; que a vida lhe é madrasta, as dificuldades são e o dinheiro mal chega ao fim do mês; compreenda, senhor guarda, o meu drama... E o polícia:
– Bem tem de ter mais cuidado, por esta vez escapa, mas cuidadinho que vou andar com o olho em si.
Segunda cena (muito hilariante): à mesa do café, um grupo de amigos e o nosso automobilista regressa, após a cena junto do carro, com as palavras muito soltas e o riso faceiro e fácil:
– Sabem lá o gozo que me deu! Ele bem escrevia e eu a rir-me; pagar multa eu, nem pensar; disse-lhe duas bem ditas: que só sabem andar a caçar inocentes e a escrever, escrever, só estão onde não devem e não passam de uns caçadores de infrações; que estava a perder tempo e a gastar esferográfica e que melhor seria rasgar o papel, porque pagar multa eu... não fora Zé Pestana!
Terceira cena (muito terna e comovente): em casa a mulher à espera para o jantar já a esfriar; os filhos a dormitar pelos cantos e o nosso automobilista cheio de salamaleques para a esposa: sabes lá, querida, dá cá um beijinho que o teu maridocas é um azarento; escapei por pouco de ir à esquadra, o carro mal estacionado, um polícia difícil de vergar, quase me ajoelhei para escapar à multa; suei bem para lhe dar a volta, mas valeu-me a habilidade e o traquejo destas situações; foi uma longa maratona de argumentação e contra-argumentação, mas valeu a pena o peito que tive de fazer e a saliva que gastei.
Não sei o que me deu hoje para falar de atores, cenas, atos; talvez pela simplérrima razão de, há dias, ter visto e ouvido na televisão um político no desempenho do difícil e ingrato papel de vendedor de quimeras, embora muito compenetrado e sério: Somos um país moderno onde há pão para todos, o desemprego diminui, os jovens olham o futuro com esperança, sem apreensão, os reformados vivem felizes e despreocupados, há casa e pão para todos, não há fome, não há miséria...
Ora, as palavras deste histrião-ator sofriam esta mágica metamorfose desde a sua boca aos ouvidos dos telespectadores: de pesadas, convictas, cor-de-rosa, passavam a voláteis, obscuras, cor-de-breu.
Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado