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Assim me retrato

Reclamei durante algum tempo por ver que, sendo um idoso muito avançado na idade, não tinha sido chamado como prioritário depois de ter visto na televisão e lido no jornal DM que uma senhora de 83 anos me tinha passado à frente. Talvez houvesse razão para tal, mas se o critério era idade, não via razão para tal ultrapassagem. Pensei: mais uma chica-esperta com bom padrinho! No meu dia e na minha hora apresentei-me à vacinação no Fórum Altice e fiquei espantado, não boca aberta de saloio, mas de coração cheio de remorsos por ter tanta pressa para mim: julgava-me uma das pessoas mais velhas do concelho e, afinal, ao olhar para tanta gente que esperava ordeiramente pela chamada, umas com andarilho, outras de cadeiras de rodas e ainda mais uns tantos “pendurados” nos braços de familiares, tive de reconhecer que havia e há gente mais prioritária do que a minha vontade de safar a minha pele. Afinal sempre havia velhos fora dos lares! Assim me retrato. No dia seguinte o critério de atendimento mudou. Já não havia chamada pela hora marcada mas apenas e só o critério de quem chegasse primeiro. Isto criou uma fila interminável de pacientes idosos esperando que os deixassem entrar. Esperemos que a situação se não repita para a chamada da segunda dose. Para lá do sacrifício físico dos mais velhos, e com a fraca ou nula autonomia de mobilidade, ficou-me na retina, a disponibilidade dos familiares para com os seus mais velhos. Nem todos acabam os seus dias nos lares suspirando pelo que deixaram na outra vida e no ingénuo pensamento que o presente está apenas no intervalo. Filhas e netas, filhos e pais, empurrando as cadeiras de rodas, ou suportando os que mal se tinham de pé, deram um exemplo bem definido e não apenas uma silhueta difusa ou um dia de exceção, de como lhes querem e de como estão dispostos a tê-los em casa. E pensei nos cuidadores informais que o estado regateia a sua existência e esmifra na remuneração. Não era melhor dar a estes velhos o dinheiro que dão a outros internados nas suas instituições ou em lares particulares? Onde há muita gente para acudir haverá sempre vagares no atendimento. O pé corre mais depressa quando corre por amor. O calor que recende do afeto é imensamente mais quente do que qualquer zelo institucional.

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O pé corre mais depressa quando corre por amor. O calor que recende do afeto é imensamente mais quente do que qualquer zelo institucional.


Autor: Paulo Fafe
DM

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8 março 2021