Se a memória não me atraiçoa, foi em Agosto de 1990 – sempre que o permitia o atendimento dos fregueses da mercearia e taberna de meus pais – que li “As vinhas da ira” (1939), de John Steinbeck, uma das obras maiores da literatura mundial. Mergulhei então na estória da família Joad, obrigada a abandonar a casa em Oklahoma e a calcorrear mais de dois mil quilómetros em direção à Califórnia, como milhares doutros norte-americanos atormentados pela Grande Depressão, em busca de trabalho e sobrevivência. A escrita de Steinbeck abalroou-me. Não mais olvidei uma das sentenças que melhor condensam essa magistral narrativa sobre o sofrimento humano: «Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima.»
Parece que hoje tudo fazemos para desvalorizar os padecimentos de tantos contemporâneos, restringindo-nos quase sempre a respostas de circunstância, à administração de placebos ou ao tratamento dos sintomas, ao invés de debelar as raízes profundas dos males que nos atormentam. Agarramo-nos a verdades subjetivas e revisionismos simbólicos. Anunciamos provas irrefutáveis e respostas instantâneas. Derrubamos estátuas, expurgamos textos e julgamos vultos do passado à luz dos valores de hoje, mas somos incapazes de reduzir as desigualdades sociais e outras formas de discriminação. Queremos uma vacina para ontem ou combater o aquecimento global, mas somos incapazes de mudar de estilo de vida. Continuamos a achar que resolveremos isto com meia dúzia de estatísticas, algumas ferramentas digitais e duas ou três personalidades providenciais.
Temos imensas dificuldades em reconhecer que não dominamos tudo, que há coisas que desconhecemos. No espaço público, rivalizam políticos, jornalistas, economistas, juristas, médicos, cientistas e outros comentadores de circunstância, cada qual munido com a receita infalível para o sucesso vindouro ou a interpretação legítima dos infortúnios passados. Entretanto, amadurecem desavenças e posições extremadas. Se especialistas esgrimem verdades incompatíveis, por que razão não poderá o cidadão comum invocar as teses que bem entende – por mais estapafúrdias que sejam –, respaldado por um vídeo no Youtube, alguma teoria da conspiração ou as alegações de um qualquer perito ou figura pública? Apavorados por tudo o que cheire a contraditório, apenas damos ouvidos a quem pensa como nós, relegando o resto da humanidade para a geena da indiferença ou do desprezo.
Convertemos debates sobre questões essenciais em cenas de pugilato, recorrendo a todo o tipo de estratagemas para resguardar tão somente os interesses dos nossos grupos de pertença. Em busca de audiência, uma parte da comunicação social limita-se a dar eco a babélicas controvérsias, sem esforço de contextualização. Gastamos quase todas as nossas forças nessas contendas, empenhando-nos em silenciar ou satirizar quem se encontra no campo adverso. Continuamos a ignorar que enquanto não nos aplicarmos a resolver em conjunto as causas profundas dos nossos problemas, não há ciência, religião, lei ou ideário político que nos valha. Questões globais requerem respostas conjuntas, mas nós continuamos a esbracejar cada um para seu lado. Não fomos educados a olhar para além do nosso nariz.
Não há ciência sem humanidade, nem cidadania responsável sem humildade. Em vez de nos ufanarmos com taxas de sucesso escolares artificiais no básico e secundário ou de avaliarmos o ensino superior a partir de índices de citações ou de produção científica, melhor seria que nos preocupássemos com a filosofia do nosso sistema educativo e formássemos as gerações vindouras para uma cidadania verdadeiramente humana. É que, entretanto, «na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima.»
*Professor da Universidade Católica Portuguesa – Braga
Autor: Manuel Antunes da Cunha