Um dos exercícios jornalísticos habituais de Dezembro serve para recordar o que o ano que se apressa a terminar trouxe de mais profícuo no campo cultural. Os balanços já começaram e irão abundar e, em alguns casos, dirão respeito também à década que finda. Em matéria de livros, há um cuja edição portuguesa importa destacar. Trata-se de As passagens de Paris (1), de Walter Benjamin.
As passagens de Paris é, por razões diversas, uma das grandes obras do século XX, um livro mítico, que tem sido justamente colocado na mesma constelação que o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, ainda que, como observa o tradutor da edição portuguesa, João Barrento, não se trate propriamente de um livro. Projecto inacabado, As passagens de Paris “é um livro que nunca chegou a sê-lo. Deveria ter sido mas não chegou a ser”. João Barrento explicou, numa entrevista concedida ao semanário Sol (2), que Walter Benjamin pretendia fazer “um grande livro que tentasse uma reconstituição do que foi o processo da cultura e da civilização ao longo do século XIX”. Em vez disso, ficou o legado de “uma recolha de leituras e das suas próprias ideias sobre os temas que pensa tratar”. O tradutor afirma que os primeiros textos são escritos em 1927 e 1929. Mais tarde, entre 1934 e 1940 (o ano em que Walter Benjamin se suicida perto da fronteira da França com Espanha, quando tentava escapar aos nazis, que já tinham invadido a França), retoma o projecto, continuando “no mesmo estilo, ou seja, muita leitura na Biblioteca Nacional de Paris, recolha de textos que lhe interessavam, muitas anotações próprias. Alguns capítulos são mais de anotações próprias, outros são mais de recolha de citações de outras obras, nomeadamente o capítulo sobre Baudelaire, um autor que para ele era uma espécie de centro de todo aquele século”. “As citações são de facto uma matéria-prima, o material prévio a partir do qual ele iria escrever o seu livro sobre o século XIX e Paris”, refere João Barrento, acrescentando que a maneira como Walter Benjamin recolhe aquilo que lhe interessa e vai articulando as citações umas com as outras já é muito reveladora. É impossível enumerar os assuntos tratados em As passagens de Paris, mas o combate às fake news e ao mau jornalismo já lá se pode encontrar: “Em 1860 e 1868 são publicadas em Marselha e Paris os dois volumes de Revues parisiennes: Les journaux, les revues, les livres, do barão Gaston de Flotte, que se propunham lutar contra a leviandade e a falta de rigor dos dados históricos na imprensa, particularmente nos folhetins. As correcções relacionam-se com factos da história e da lenda, da esfera cultural, literária e política.” Impossível é, igualmente, mencionar as personagens que surgem na obra. Mas há uns portugueses que talvez justifiquem uma referência. É que eles destacaram-se pelo seu empreendedorismo singular, se assim se pode dizer. São os “irmãos Péreire”, que, em 1852, criaram “o primeiro grande banco moderno”. Segundo Egon Friedell, autor de História da cultura da Idade Moderna, que Walter Benjamin cita, dizia-se que o banco era “o maior antro de jogo da Europa”. Ali se “fazia especulação selvagem em todos os domínios: caminhos-de-ferro, hotéis, colónias, canais, minas, teatros”. Quinze anos depois, “foi a bancarrota total”. Quando ainda não tinha sido cunhado o termo “capitalismo de casino” já havia portugueses a praticá-lo.
As passagens de Paris recolhem ainda curiosas projecções do futuro. Numa visão de Paris em 2855, transcrita por Walter Benjamin, Arsène Houssaye, num texto publicado em 1856, faz corresponder a uma abundância de imaginação uma escassez de esperança. Daqui a pouco mais de 800 anos, na capital francesa, nos Campos Elíseos, pavimentados a ferro forjado e com cobertura de cristal, “zumbem as abelhas e os zângãos das finanças!” Na frase seguinte, que torna irrisórias as previsões dos colapsólogos contemporâneos, a escala aumenta: “Os capitalistas da Ursa Maior discutem com os agiotas Mercúrio! Acabam de colocar hoje mesmo no mercado de acções os destroços de Vénus, cuja metade foi incendiada pelas suas próprias chamas!”
Mesmo quando parecem exagerados, os fragmentos da obra de Walter Benjamin compõem, de facto, “a proto-história do nosso próprio tempo”.
(1) Lisboa: Assírio & Alvim, 2019 (2) “‘Benjamin dizia que o século XIX era uma espécie de sonho e o presente era o despertar’”. 29 de Abril de 2019
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes