Em tempo de Natal, quando participamos na celebração da Eucaristia, escutamos algumas narrativas da infância de Jesus, com que ficamos encantados e enternecidos: o nascimento do Menino e o anúncio aos pastores (Lc 2, 1-20), os Magos do Oriente (Mt 2, 1-12), Jesus entre os doutores (Lc 2, 41-52)... Além disso, a literatura apócrifa contribui, em boa medida, para o modo como, no presépio, se representa o nascimento de Jesus: é nela que se refere a presença do boi e do burro, na gruta em que Jesus nasceu (Evangelho do Pseudo-Mateus, 14), assim como o número e o nome dos Magos ou mesmo a sua designação de Reis (Evangelho Arménio da Infância, 5, 10 e 11, 1-2).
Acontece, contudo, que o encanto e a ternura com que escutamos estas narrativas e contemplamos estes cenários são, por vezes, perturbados com questões que não podem ser desvalorizadas. Perguntamo-nos se serão lendas, de coloração folclórica, ou antes narrativas teológicas que nos ajudam a compreender melhor os evangelhos. E ainda nos questionamos sobre o grau de historicidade e o género literário das narrativas. Não sendo possível responder, de forma alongada, a estas questões, importa ter presente que os narradores (Mateus e Lucas) estão mais focados em dar relevo aos traços divinos do recém-nascido do que em verificar a exatidão histórica dos acontecimentos.
O Menino é visto como a realização plena dos grandes personagens de Israel (daí as muitas citações do Antigo Testamento), ao mesmo tempo que o seu nascimento e infância são relidos à luz da ressurreição. É feliz, a propósito, a expressão de Benito Marconcini: “a luz do Ressuscitado ilumina a manjedoura de Belém” (I vangeli sinottici, p. 128). Nem será por acaso que o ambiente de alegria e paz das narrativas da ressurreição também aqui está presente!
Podemos então afirmar que Mt 1-2 e Lc 1-2 são uma história meditada. Com a preocupação de fornecer ensinamentos ao leitor, utiliza-se um género literário, o midrash, em que se misturam, de forma livre, “personagens históricas, dados geográficos e históricos autênticos, com um arranjo literário imaginado, sempre com o intuito de interpretar teologicamente a situação histórica presente” (Armindo Vaz, Palavra viva, Escritura poderosa..., p. 70). Ou, então, dizer que “Mateus e Lucas (...) queriam não tanto narrar ‘histórias’, mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada, e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada” (Bento XVI, A infância de Jesus, p. 21).
Com a narração livre dos acontecimentos, Mateus e Lucas procuram edificar e iluminar a vida dos crentes, ao mesmo tempo que situam Jesus na história (a genealogia de Jesus, em Mt 1, 1-17, assim como as referências históricas de Lucas comprovam-no) e sublinham a sua humanidade e corporeidade. Num e noutro caso, estes capítulos estão bem articulados com o resto do evangelho, de que constituem um prelúdio ou prólogo: os temas fundamentais aí presentes são posteriormente desenvolvidos e os títulos atribuídos ao Menino são aqueles que, a seguir, se apresentam. É isso que confere a estes textos uma grande densidade teológica, a par de um notável fascínio literário.
Mateus realça a descendência davídica de Jesus (1, 1-17) e dá um especial relevo a José (1, 18-25). Além disso, perspetiva a universalidade da salvação (os Magos do Oriente [2, 1-12]) e associa Jesus ao percurso histórico do seu povo (fuga para o Egito e martírio dos inocentes [2, 13-18]), como convém a um Salvador.
Num registo dual (duas anunciações, dois nascimentos, dois cânticos), Lucas coloca em paralelo João e Jesus, deixando claro que este é superior àquele (cf. 1, 15 e 1, 32), e dá relevo a Zacarias e a Maria, em cuja boca coloca dois dos mais belos e densos cânticos bíblicos: o Benedictus (1, 68-79) e o Magnificat (1, 46b-55).
Em ambos os casos, os acontecimentos são narrados com palavras densas, ninguém lhes fica indiferente e suscitam tais ondas de alegria e paz que, a partir de Belém ou de Ain Karim, continuam a chegar até nós, sempre que, em cada Natal, voltamos a escutar a proclamação destes textos.
Autor: P. João Alberto Correia