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As cinzas das coisas

Uma longa lista de obras das artes plásticas, do cinema, da literatura e da música, que desapareceram – por causas naturais ou por intervenção humana, involuntária ou voluntariamente, com bons ou maus propósitos –, que, apesar de anunciadas, nunca chegaram a ser criadas ou que não foram concluídas é o que nos oferece As peças que faltam*, do poeta francês Henri Lefebvre. A extensa listagem não tem uma ordenação perceptível. As razões ou sem-razões que provocaram as inúmeras ausências misturam-se, assim como os tipos de ocorrências que ditaram as faltas ou os géneros de peças de que nos encontramos privados. Também não existe uma sequência cronológica no registo das obras subtraídas à história.

Ao longo das quase cem páginas do livro, podemos encontrar três referências a criadores portugueses: ao artista plástico Pedro Cabrita Reis, ao poeta Fernando Pessoa e ao cineasta João César Monteiro. O rol do que não temos inclui outro autor de língua portuguesa: “Em 1938, a junta militar brasileira queima em praça pública os livros de Jorge Amado na sua cidade natal, Salvador da Baía”.

As peças que faltam desapareceram amiúde por acção do fogo: “No dia 10 de Dezembro de 1853, um incêndio destrói os armazéns da Harper, a editora de Herman Melville e elimina todo o stock; a procura era insuficiente, não foi feita nenhuma reimpressão dos romances de Melville ao longo da sua vida”. Outros incêndios são mais recentes: “A livraria L’Écume des Pages, em Paris, arde na noite de 22 de Fevereiro de 2002, dez mil volumes esvaem-se em fumo”. Poucos meses depois, outro caso tem consequências mais danosas: “No dia 29 de Maio de 2002, três milhões de livros foram consumidos pelas chamas no incêndio dos armazéns da editora Les Belles Lettres, em Gasny, no Eure; desaparecem textos chineses do período Ming, a obra completa do filósofo italiano Giordano Bruno, o Corpus Flaubertianum(edição diplomática de Gustave Flaubert), uma primeira edição bilingue dos textos de Shakespeare, seiscentos Budé (1921-1960), primeiras edições encadernadas a couro, a totalidade ou parte dos fundos de quarenta e cinco editoras, como a Unes, Fata Morgana, Chandeigne, L’Escampette”.

O fogo, em certas ocasiões, apagou o trabalho de poetas e romancistas: “Em 1909, William Carlos Williams publica Poems, o seu primeiro livro; vendem-se quatro exemplares, os restantes desaparecem num incêndio”; “em Franzensbad, onde Elsa Triolet se tratava, o hotel arde, e com ele o manuscrito do romance Camouflage”; “a casa de Georges Bernanos arde em 1940, em Fressin, Pas-de-Calais”; “durante o grande incêndio do maciço de Alpilles em 1999, apenas uma casa, a do poeta Stephen Spender, ficou arruinada: dois mil livros, quadros e os seus arquivos desaparecem”.

A devastação pelo fogo também foi nociva para as artes plásticas: “A composição de Velásquez executada sobre o tema imposto da expulsão dos últimos representantes dos Mouros arde em 1734 no incêndio do Alcazar; o retrato equestre do rei Felipe IV e numerosas obras da série de efígies de anões e bufos desaparecem por sua vez nos incêndios de algumas outras residências reais”. Mais recentemente, “o Fundo Regional de Arte Contemporânea de Corte, na Córsega, arde; uma centena de obras esvai-se em fumo, criações de Dan Graham, Carl Andre, Sophie Calle, e Annette Messager”. Por vezes, as chamas eliminaram obras singulares: “A Assunção da Virgem de Albrecht Dürer, 1509, tríptico comumente apelidado de Altar Heller, foi destruído num incêndio” e “o quadro de Monet Os Nenúfares ardeu num museu de Nova Iorque”.

Raros são os exemplos do lume penalizador da música. Um deles diz respeito a Aretha Franklin, que perdeu arquivos e recordações no incêndio da sua casa em Detroit.

Tantas vezes ciosamente guardadas, também às coisas, fruto ou não do trabalho e do génio criativo, está frequentemente reservado um destino de cinzas; um esquecimento, todavia, algum dia por alguém lembrado.

*Lisboa: BCF Editores, 2019


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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8 março 2020