A política, sempre, queiramos ou não, cerca-nos. Intervenientes ativos ou passivos, participamos da política, em liberdade nas democracias, condicionados ou sob ameaça, potencialmente letal para a oposição, nos regimes autoritários ou ditatoriais.
Dizem-nos os filósofos e os psicólogos, e percebemo-lo todos, que o comportamento das grandes massas é bem mais marcado pela emoção do que pela razão (que deveria prevalecer). Claramente conhecedores do facto, os conselheiros do marketing político lembram aos políticos, para quem vendem as suas estratégias comunicacionais, que a coreografia da mensagem releva muito, porventura mais, do que o seu conteúdo. E já todos conhecemos as desculpas centradas em erros de comunicação quando algo corre mal na estratégia de um governo…
Um, dois, três. Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-ministro, as três mais altas figuras políticas do Estado decidiram marcar presença no Mundial de futebol no Catar para, nas suas palavras, “apoiarem a seleção nacional” nos jogos da designada “fase de grupos” (quando escrevo estas linhas, a seleção nacional de futebol já assegurou a passagem para a fase seguinte e, entretanto, por razões de saúde, o primeiro-ministro acaba de informar que não efetuará a viagem).
Não iriam ao Catar numa viagem de estado, que possa ser tomada pelo poder político daquele país como um apoio implícito de Portugal a um regime que desrespeita, sob múltiplas formas, os direitos humanos – menorização cívica das mulheres, perseguição de minorias sexuais ou violência laboral sobre os muitos imigrantes –, tal como consagrado na DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem), asseguraram-nos estes três (dois, agora) ilustres apoiantes da seleção portuguesa. O presidente Marcelo, por seu lado, vincou que no Catar iria mesmo falar sobre os direitos humanos, num colóquio, intentando assim limpar a imagem de descontrolo que veiculara, quando na resposta à questão colocada por um jornalista, em Lisboa, no final de um jogo de preparação da seleção portuguesa para o mundial da FIFA, soltou um “esqueçamos isto” a propósito do assunto (o desrespeito dos direitos humanos no Catar), porque doravante o que interessava, sentenciou, era o futebol e a seleção portuguesa.
Confiantes na bonomia da generalidade dos portugueses, alicerçados nalguma tradição e sob a proteção conferida pela habitual overdose de futebol nas televisões em época de mundial FIFA, foi decidido, pois, enviar ao Catar a mais ampla e alta representação política nacional. Pagam os cidadãos, mas nada tem a ver com o Estado, esclarecem-nos...
Quase todos os países europeus enviam altos representantes ao Catar, sabemos todos, mas Portugal certamente que fica muito bem colocado na escala escolhida. O presidente Emmanuel Macron, disse que marcaria presença numa eventual meia-final envolvendo a França, o presidente Jo Biden, por seu lado, limitou-se a telefonar para o balneário da equipa dos EUA, na véspera de um jogo, a desejar boa sorte “aos rapazes” (e mesmo que atentemos no menor relevo do futebol no país, não deixa de ser uma diferença a reter).
Por mim, como muitos portugueses, também tenho assistido na televisãoaos jogos da “nossa seleção”, com alguns lapsos temporais, mas estimo que a qualidade do jogo apresentado nada tenha a ver com a presença in loco dos nossos altos dignatários enviados.
Num outro campeonato, muito mais importante, ficamos por estes dias a saber que em 2024 Portugal deverá ser ultrapassado no PIB per capita pela Roménia. Quando este último país aderiu à UE, há menos de vinte anos (2004), apresentava um PIB per capita que não atingia 50% do equivalente português. Agora, a Roménia presta-se a ultrapassar-nos no mais relevante indicador do campeonato do desenvolvimento.
Até poderemos vir a ganhar o campeonato do mundo de futebol, aliviando assim algumas mágoas pessoais, e mesmo coletivas, mas não deixaremos de estar a meter golos numa baliza pouco valiosa (mais notoriedade para a captação de turismo de estrangeiros, pode aventar-se como mais-valia económica). Precisamos, deveras, nós sociedade e os responsáveis da governação, de acertar mais nas balizas que verdadeiramente contam, para combater a pobreza que ainda nos cerca – precisamos de marcar mais golos nas metas do desenvolvimento!
Autor: Amadeu J. C. Sousa