Após ter dado conta da discussão que se estava a efectuar no Conselho Europeu sobre a criação de centros de triagem para migrantes provenientes de fora da Europa, o Jornal 2, da RTP2, de quinta-feira, escutou, sobre o assunto, Helena Ferro de Gouveia, uma jornalista que, há dez anos, trabalha voluntariamente com refugiados. Contou ela que um exercício que se tem dado ao trabalho de fazer é o cruzamento de mapas do mundo. A tarefa consiste em pegar no que regista os conflitos, no que inscreve os recursos naturais e no ainda que assinala as vendas de armas e em sobrepô-los. O resultado mostra que, frequentemente, os três mapas coincidem.
A relação entre conflitos mundiais, recursos naturais e vendas de armas raras vezes é estabelecida e, quando o é, tende a encontrar pouca repercussão pública. Escassas vezes, portanto, se constata que os refugiados são uma consequência e que o negócio das armas é uma causa.
Falando de uma “guerra profunda contra o mal”, o Papa Francisco perguntava, no dia 8 de Setembro de 2013, na Praça de S. Pedro: “Para que serve fazer guerras, tantas guerras, se não se é capaz de fazer esta guerra profunda contra o mal?” A resposta surgia concisa: “De nada serve”. Para o Papa, “esta guerra contra o mal comporta dizer não ao ódio fratricida e às mentiras de que se serve; dizer não à violência em todas as suas formas; dizer não à proliferação das armas e ao seu comércio ilegal”.
Esta última referência suscitou a Francisco mais uma interrogação, sem, desta vez, qualquer resposta: “Esta guerra, e a outra – porque há guerras em toda a parte – é deveras uma guerra devido a problemas ou é uma guerra comercial para vender estas armas no comércio ilegal?”.
A questão vai à raiz do problema: as guerras existem porque são necessárias ao próspero negócio de armamento. “A guerra não é senão comércio”, dizia o escritor Evelyn Waugh, que Nello Scavo, jornalista do diário católico Avvenire, cita em Os inimigos do Papa Francisco (Esfera dos Livros, 2017), no eloquente capítulo em que fala sobre “mercadores de morte”. Nello
Scavo observa que a referência do Papa corresponde a uma intensa batalha contra a produção e o comércio de armas, que o jornalista sublinha ser “um tema-chave” do pontificado.
Nello Scavo chama a atenção para outra intervenção do Papa, a 15 de Maio de 2014, mencionando que, para Francisco, o momento não era para “encobrir os negócios sujos de sangue das democracias europeias com a cortina de um piedoso moralismo”. O pontífice declarou, nessa ocasião, que “é cínico proclamar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, ignorar ou não fazer caso de homens e mulheres que, obrigados a deixarem a sua terra, morrem nessa tentativa ou não são acolhidos pela solidariedade internacional”.
Como se, prossegue Nello Scavo, os refugiados não fossem a consequência natural das guerras. “Como se os países grandes exportadores de armas quisessem para si e para os seus cidadãos o benefício económico das exportações, voltando-se para o outro lado quando os efeitos dessas exportações batem à porta de casa e têm o olhar perdido e desesperado de seres humanos em fuga.”
O coordenador da Rede Italiana para o Desarmamento, Francisco Vignarca, citado pelo jornalista Lucandrea Massaro, um dos editores da edição italiana da Aleteia, considerou que a denúncia que o Papa faz de uma “guerra comercial” é tão certeira que, hoje, aliás, é mesmo possível prever as guerras a partir do estudo dos fluxos do comércio das armas e dos gastos militares.
Francisco Vignarca exemplificou com o caso da Síria, que, nos anos antes de a guerra civil começar, aumentou a importação de armas, incluindo as produzidas na Itália, em 580%, ou seja, quase seis vezes mais. Diz ele, por isso, que “negar o vínculo entre este comércio de armas em alguns lugares do mundo e a explosão dos conflitos é negar a evidência”. E não ver a relação entre a explosão dos conflitos e os surtos de afluxo de refugiados à Europa é outra forma de cegueira.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
As armas e as migrações assinaladas
DM
1 julho 2018