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Às vezes, as primeiras impressões podem ser bem erróneas). Assim foi a minha 1.ª impressão sobre a voz e a pessoa da grande Argentina Santos. Já lá vão muitos anos, e na 1.ª vez que ouvi a sua voz vagamente rouca, com um sotaque raro (que incluía uma dicção da letra “r” muito pessoal) e com uma abundância pouco usual de pausas ou de ímpetos na pronúncia de certas sílabas, na minha ignorância quase abominei a intérprete. Que imaginei uma mulher feia, velha, tosca, de baixa classe, da vida nocturna e aspecto físico daquelas que antigamente nos liam a sina (para mais, no seu nome parecia haver uma certa alusão a “prata”, a prestamismo). Nada que para mim se pudesse comparar à grande Hermínia Silva, a Lucília do Carmo, a Fernanda Maria, a M.ª Teresa de Noronha, a Amália Rodrigues, a Maria Clara ou a essa estilista romântica que apareceu (e desapareceu) anos depois e que dá pelo nome de Maria Ana Bobone. Para mais, de feiticeiras já eu tinha tido (ou haveria de ter) a minha conta, quando os meus passos se cruzaram com as de “Ovens”, de “Early made”, de “Saint Fins” ou de “Sandy place”. Isto, falando em inglês, seguramente uma das línguas vivas que tem maior maior parentesco com o idioma dos visigodos e ostrogodos, o qual ficou bem documentado desde o séc. VI, quando o bispo Ulfila traduziu a Bíblia para essa sua língua nacional, hoje extinta.
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Morreu Argentina Santos, as Artes estão de luto). Foi, precisamente, no dia em que, em Remelhe, mudavam de lugar os restos mortais desse futuro santo, barcelense, o bispo e missionário D. António Barroso, amigo dum meu bisavô. E curiosamente, comigo a passar de carro inadvertidamente, pelas imediações. Morreu ela com 95 anos e já estava a cair outra vez no esquecimento público. Caracteristicamente, José Mário Branco também morreu por esses dias e esse sim, teve homenagens a rodos… Argentina era uma mulher pequena, redonda, mas muito bela. Nasceu Maria Argentina Pinto dos Santos, em 6 de Fevereiro de 1924. De origem lisboeta e popular, foi cozinheira e mais tarde proprietária duma casa de fados, a “Parreirinha de Alfama”, desde 1950 em diante. Foi lá (e também ao cantar marchas populares) que aos poucos se foi tornando merecidamente célebre. Teve um longo romance, mais ou menos falhado, com um fadista e compositor menor, de nome Alberto Rodrigues. A sua consagração (como é frequente em Portugal) foi bem tardia, já com mais de 60 anos… Espectáculos na Venezuela, França, no Lisboa 94 (aos 70 anos!), no “Queen Elizabeth Hall (Londres, 94), festival de Edimburgo (em 95), “Cité de la Musique” (Paris, 97). O público mundial perdera os tempos áureos da voz que Argentina tinha tido na juventude, a frescura, o “contorcionismo vocal”, a arte das pausas, do desdobramento das sílabas em várias notas perfeitamente enquadradas, os arranques, a melancolia e algum pessimismo de fundo, o estilo chorado mas às vezes tão cheio de saudosismo como de sabedoria e de esperança. Como só sabe cantar quem sofre desgostos de amor.
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Algumas interpretações inesquecíveis de Argentina). Objectivamente ofuscada pela “eucalíptica” dona Amália, são raras as gravações antigas (e até as menos antigas…) de Argentina. Porém, lembro aqui alguns dos melhores fados por si cantados. Por ex, “O chafariz do rei”; “Coração não batas tanto”;” Passeio fadista”;” Cabelos brancos”; “Vida vivida”;” Quadras soltas”; “Chico da Mouraria”; “Maria Severa”; “Herança fadista”; “Meia noite é meia vida”; e vários outros, entre os quais um, em que se desculpa por pronunciar os “erres” daquela maneira, à “setubalense”…
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E morreu outra notável fadista, Teresa Tarouca). De seu nome Teresa de Jesus Pinto Coelho Teles da Silva (n. 4-1-1942), pertencia à nobreza, sendo parente de Vicente da Câmara (e seus filhos), da citada M.ª Teresa de Noronha e de frei Hermano. Também cantou folclore e foi muito popular nos anos 60. Perdeu visibilidade gradualmente, depois da Revolução de 74. A sua voz denotava alguma tristeza e desesperança. Sem ser especialmente bonita, o seu aspecto físico remetia talvez para o sul de Itália e Grécia. Contudo, sempre senhora de si e com uma personalidade vincada. Alguns êxitos: “Deixaste a vida de outrora”; “Não sou fadista de raça”; “Ora bate, bate”; “Fado do cartaz”; “Zé sapateiro”; “Micas do trapo”; “Passeio à Mouraria”; “Ó ai esteja quedo”; “Ai quem me dera”; “Gota minhota”; “Rebatida”, etc.
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O bicentenário de Offenbach). Jakob Offenbach (n. em Colónia, 1819-m. em Paris, 1880) é para mim, o maior compositor judeu de sempre. Naturalizado francês, dizia dele o grande Rossini, que era o “nosso pequeno Mozart dos Campos Elísios”. Geniais são muitos trechos da sua prolífica obra: "A grã-duquesa de Gerolstein”; “Contos de Hoffmann”; “La belle Helène”; “Orfeu nos infernos”; “Vida parisiense”; “Alegria parisiense”; etc., etc. Um bicentenário que, em Portugal passou quase despercebido…
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José Mário Branco e Eduardo Nascimento). Também faleceram por estes dias. Com a escolha do africano Eduardo Nascimento para representante português no então muito importante Festival da Eurovisão, o governo de Marcelo Caetano exibia uma certa “integração racial” no Império português (idem com a selecção de futebol e Eusébio, Coluna, Vicente, Matateu). Já de J. M. Branco, bom músico mas cheio de duradouro ódio ostensivo à burguesia, não quero falar. Isto porque… “quem não se sente, não é filho de boa gente”.
Autor: Eduardo Tomás Alves