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Apanhados 8

Na década de 60 do século passado, nos meus saudosos tempos de estudante, o coração da nossa cidade pulsava mais forte e vário no círculo urbano definido pelas ruas do Souto e dos Capelistas, pela praça da Arcada, pelo posto do Turismo e dos Correios; era, pois, um tempo em que por aí circulavam os poucos transportes privados e públicos, inclusive o carro elétrico com percursos únicos da Ponte de S. João ao Monte D'Arcos e da Estação da CP ao Bom Jesus e se estacionava o automóvel à entrada dos cafés Avenida, Astória e Viana.

Mas, no que, mormente, à juventude masculina concernia, era a esquina da Benamor (Pastelaria) ponto de encontro obrigatório para miradouro, a certas horas do dia, sobretudo no início-da manhã e fim de tarde, das moçoilas namoradeiras que por aí passavam; e, desse posto de observação, o piropo adoçado, o comentário brejeiro ou o convite, quase sempre inocente mas ardoroso, disparavam em todas as direções, fazendo corar muitas das jovens donzelas.

Pois bem, como os tempos sempre mudam, estas zonas mudaram profundamente como, hoje, podemos constatar, sobretudo a favor do cidadão e contra o automóvel e o transporte público, com a criação de largos espaços pedonais, de cavaqueio e de lazer e amplas esplanadas; e é, agora, e já sem a esquina da Benamor há muito transformada em estabelecimento bancário (BPI) que os locais da má-língua e de observação de quem passa, assentam arraiais junto ao Posto de Turismo, na esquina norte da Arcada junto à praça de táxis e na esquina sul, a caminho da Brasileira; e é aqui que ou aproveitando os bancos corridos de pedra ou mantendo-se em posição erétil, a mais saudável, se reúnem grupos animados e palradores de homens.

São grupos que presumo de reformados, dada a sua idade e despreocupação, que se entregam à bisbilhotice, à amena cavaqueira e à discussão acesa sobre futebol, política e, muito frequentemente, ao louvor à comezaina e ao uso da anedota brejeira; e que nunca falta à gente lusa onde abunda o portuga castiço e caceteiro.

E foi assim que, há dias, numa manhã limpa e serena por ali deambulando, topei um animado colóquio entre os circunstantes do posto do Turismo que me parece um dos grupos mais letrados e politizados, como igualmente arruaceiros.

Então, altercava o mais obeso do grupo:

- Querem lá ver, companheiros, que o governo agora com o encerramento de urgências nas maternidades dos quatro maiores hospitais de Lisboa durante o verão quer que as mulheres voltem a parir em casa, a caminho do emprego ou nas ambulâncias dos bombeiros, socorrendo-se de parteiras ou parteiros habilidosos, pois os médicos e enfermeiras especializados não chegam para as encomendas?

E salta o dos óculos fundo de garrafão:

- E não é só isso; já viram que nos hospitais públicos, ditos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), já vão faltando compressas, gazes e adesivos nas cirurgias; agora olhai bem o que será um homem ou mulher de barriga aberta, na banqueta cirúrgica, à espera que cheguem os materiais necessários, sabe lá quando, à desinfeção e cosedura do respetivo bucho; do jeito que a coisa está, o mais certo é ser desinfetado com a esfregona de limpeza e cosido com linhol de pesca.

De seguida, o que me parece mais politizado e filósofo arranca com a explicação para o estranho facto:

- E sabem porquê, seus zeros à esquerda em política, é a pouca vergonha das cativações que o ministro dito Ronaldo das Finanças, qual Salazar do século XXI, impõe obcecado em baixar o défice, não sendo tais cativações mais do que calotes aos fornecedores de bens e serviços ao Estado.

É, então, que neste momento se aproximam duas turistas com ar nórdico e gostosamente pouco vestidas pela carestia de pano que exibiam no talhe de suas saias; de pronto, o que me parece o galifão do grupo lança o alarme aos companheiros:

- Alto lá, boas cativações eram estas duas belezas, quisessem elas colaborar na descida do défice machista lusitano.

- Ora, lá língua tens tu - salta o filósofo; aquilo que elas podem querer tu não tens, ou seja dinheiro, motor de arranque e carburador quanto baste; além disso, vindo elas de mãozinha dada e muito cúmplices, dispensam bem palermas como tu.

Entretanto, soam sonoras gargalhadas gerais no grupo e eu afasto-me a praguejar:

- Porra, vai cá uma nortada!

Então, até de hoje a oito.


Autor: Dinis Salgado
DM

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3 julho 2019