Horácio adormecia e acordava na crença ilusória de que os senhores que mandam na cidade – e seus pares – amparassem o comércio de rua; que fizessem despertar para a alvorada, que ilumina qualquer velho burgo que se preze, dando a devida atenção ao tecido económico citadino. Essencialmente ao mais tradicional que valoriza a terra e marca, para todo o sempre, quem por ela passe. Mas não, tudo não passou de um sonho que, rapidamente, se transformou em pesadelo.
Ou seja, o nosso lojista que acordara bem cedo, numa manhã outonal de 2013, para ir depositar o seu voto na urna da mudança, acreditando no cumprimento da palavra dada, logo percebeu que tal não passou de um embuste daqueles que a propagandearam. Daí, o abreviar a morte do passado nos braços do presente, pouco se importando que o futuro venha a conhecer alguns dos baluartes da tradição comercial da nossa Bracara Augusta, a fim de que compreendesse a hermenêutica dos tempos. Sintoma disso é o premeditado abandono do slogan: “Braga, Capital do Comércio”, por troca com Vigo, de “nuestros hermanos”.
Braga está triste e mais pobre, mas mais desolada e angustiada fica com o desaparecer daqueles que lhe quiseram dar vida, movimento e pujança comercial, mas que foram contrariados pelas novas forças do efémero e da massificação do consumo violentamente atirado para as suas entranhas. Fazendo com que seja, hoje, uma pequena amostra daquilo que poderia ter sido, se gente de bem a tivesse governado ao longo dos tempos. Pois como lá dizia o nosso Junqueiro: “se a vaidade é o orgulho dos imbecis, o orgulho é a vaidade dos génios”. E, estes, há muito se afastaram da política.
Cidade que foi de oiro, diamantes e safiras de oportunidades, em cujos empresários faziam pequenas fortunas – com esforço, trabalho, dedicação e muita poupança –, com as quais compravam o velho para o tornarem novo, sempre na velha máxima: “oiro quanto possas, terra quanta vejas e casa quanta caibas”. E o que vemos? Esses prédios outrora restaurados, todos degradados, em ruínas e muita cumplicidade nesse estado de coisas. Afinal, ao velho Horácio não restou outra alternativa que não fosse aquela produzida pelos grandes supermercados: tudo a metade do preço. A fim de esvaziar a loja e entregar as chaves ao senhorio. E se em segundos o pensou, rapidamente o fez.
Com tal desconto, nunca imaginara rodear-se de tantos amigos. Daqueles que até lhe sabiam o nome e que, em quatro décadas, nunca os vira, na sua superfície comercial. Quais aves de rapina a pairarem sobre os despojos da preza, até devorarem as suas entranhas. Deixando as prateleiras nuas, qual esqueleto de um recheado “bazar” que, entretanto, perdera o seu fulgor comercial. Não só por escassez de clientela, a custos justos, mas por enviesada visão estratégica de que pensa a cidade.
Então, pôs-se a recordar as palavras de alguém, desaparecido, que lhe passara o testemunho: “o balcão é uma espécie de palco em que os artistas, que nele representam, servem o público”. Na verdade, tal como o ator, para agradar aos espectadores, o balconista sorri se o diálogo é alegre, entristecendo-se, também, nas desventuras das pessoas.
Escuta e dá seguimento à peça que está em cena, recorrendo às frases que vão mais ao encontro delas, quer se trate dos políticos da nossa praça ou da carestia de vida. Bem como de mortes, doenças, desavenças, problemas com filhos, noras, genros, netos, cão, gato, etc.. E quantas vezes, pessoalmente, com situações bem piores.
Pelo que só nos restará ver, ao “cair do pano” sobre a loja tradicional do nosso Horácio, mais um café, lanchonete ou outra chinesice qualquer.
Autor: Narciso Mendes