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“Antes é que era bom!”

“Antes é que era bom!” – assim se intitula o mais recente ensaio de Michel Serres, distinto pensador humanista que, a partir dos seus 87 anos da sabedoria, interpela com fina ironia todos aqueles que romantizam o passado e desdenham o presente.

O seu percurso biográfico como trabalhador braçal, mais tarde oficial da Marinha e ainda professor universitário, autorizam-no a realizar uma análise contundente sobre as conquistas e as resistências dos progressos sociais e culturais dos povos, sobretudo aqueles alcançados pelas últimas três gerações.

Para conseguir os seus intentos, opõe duas personagens: os Velhos Ranzinzas – “ricos e tagarelas, convertidos em maioria, eleitores cada vez mais decisivos, desejando além do mais exibir o sucesso da sua existência” – à Polegarzinha, personificando esta as novas gerações ligadas às tecnologias e ao mundo virtual, identificada brevemente como “desempregada ou estagiária […] que pagará durante muito tempo a vida dos aposentados [Ranzinzas]”.

Fazendo uso de um manancial de informação que atesta à saciedade os progressos alcançados pela humanidade no último século nas áreas da paz social, da saúde, da educação, dos transportes, das comunicações, entre outras, o autor vai confrontando estas conquistas com as difíceis condições de vida existentes das gerações anteriores, sobretudo quando evoca a sua própria experiência familiar e nacional.

Dá particular atenção e valor ao tempo de paz prolongada que se vive há décadas na Europa, pois, como realça, “durante um século, a minha família e eu conhecemos a guerra, a guerra, a guerra…”

Com humor desconcertante desconstrói com factos a tentação dos Ranzinzas idealizarem a sua juventude e, assim, menosprezarem o tempo presente: “antes, de guerra ou de doença, de miséria ou de sofrimento, morria-se mais novo, era melhor assim.

Porquê? Melhor, porque, em média, os cônjuges juravam fidelidade por apenas cinco anos no momento do casamento, ao passo que hoje a estatística diz que a afirmam por sessenta e cinco anos: inferno!” Se a leveza do humor tece constantemente a escrita, a profundidade e a argúcia da argumentação, suportada nos grandes paradigmas socioculturais que vai desfiando, constitui para o autor o pilar do seu ensaio.

Assim, demonstra habilmente que, se foi necessário afirmar, a certa altura, um humanismo assente na centralidade da pessoa – que, entre outros, deu origem à Declaração Universal dos Diretos Humanos –, a necessidade de um novo paradigma mais inclusivo de Todos os Outrosque ultrapasse o “narcisismo antropológico” criado constituirá, porventura, a chave para o presente e o futuro da humanidade. Pois, como refere, “se homem é infinito, o mundo é finito”.

Entre os muitos temas abordados, desde a guerra e a paz às ideologias políticas (e.g. totalitarismos e exercício de poder), socioeconómicas (e.g. concentração e distribuição da riqueza) e culturais (e.g. machismo, diversidade étnica e linguística), a intenção do autor consiste, no entanto, em desmascarar o poder simbólico e real que os Velhos Ranzinzas possuem atualmente, “fazendo pairar uma atmosfera de melancolia sobre os tempos de hoje.

Afetam a moral das Polegarzinhas e impedem as inovações tomando, um pouco por toda a parte, o poder” e denunciar o bloqueio do futuro que com esta postura protagonizam: “um singular cagaço do futuro toma conta de uma política invadida pelos velhos.

Rico e governante, o Velho Ranzinza torna-se perigoso.’’ Para Michel Serres, o Daesh, o Brexit, Trump, Putin ou Erdogan constituem uma mesma moeda – a recusa do progresso e do futuro.

Se a crítica deste ensaio é dirigida, antes de mais, aos Velhos Ranzinzas, Michel Serres não coloca Polegarzinha num pedestal, pois sabe bem que “possui muita informação, mas nem sempre conhecimento” e que o individualismo de “solidão” também tomou conta dela em oposição ao individualismo “da Nação” das gerações passadas…

No entanto, reclama uma oportunidade para as novas gerações: “frente a ti, minha Polegar tão pequena, tão ligeira, tão suave que te chego a ver como um pássaro, um sopro espiritual. Ah! Se o Velho Ranzinza pudesse deixar-te em paz…” Este apelo contém uma força social, política, cultural, económica e eclesial extraordinária!


Autor: José Luís Gonçalves
DM

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1 setembro 2018