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“Amai os vossos inimigos...”

Na sequência do evangelho do passado domingo (Mt 5, 17-37), o do próximo (Mt 5, 38-46) apresenta as duas últimas antíteses do conjunto de seis com que Jesus sugere a medida alta da sua mensagem, encabeçada pela afirmação: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogar, mas completar” (5, 17). O texto coloca-nos perante a necessidade de superar a “lei de talião” (vv. 38-42) e a proposta do amor aos inimigos (vv. 43-46).

A “lei de talião” (do latim talio, talis [tal, igual] ou ius talionis [lei do corte ou contusão]) é assim formulada, em Ex 21, 24-25: “se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão”1. Formulações semelhantes se encontram nos parágrafos 196 e 197 do código de Hammurabi (Babilónia, séc. XVIII a. C.) e na lei romana das “Doze Tábuas” (séc. V a. C.).

Parece ser bárbara, mas, na verdade, a “lei de talião” representava, para a época, um avanço civilizacional, um instrumento de equilíbrio jurídico que sustinha a aplicação desproporcionada e desenfreada da vingança, contida no “Cântico da espada”, de Lamec: “Matei um homem porque me feriu e um rapaz porque me pisou. Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete” (Gn 4, 23-24).

Perseguindo o aperfeiçoamento dos seus discípulos (v. 48: “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”), Jesus propõe um amor incondicional, expresso em quatro aplicações casuísticas: “Não resistais ao homem mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado” (vv. 39-42).

Os exemplos apresentados espelham o ambiente do tempo e apontam para a necessidade de relativizar as ofensas e romper com a espiral de violência: a mais ofensiva era a bofetada na face direita; eram frequentes os processos por coisas pouco importantes (peça de vestuário); acontecia até de alguém ser submetido a trabalhos forçados, como servidor de escolta ou portador. O apelo à generosidade não se enquadra bem com as sugestões anteriores, mas pode evocar que a contenção da violência e o amor ao próximo encontram na partilha dos bens o seu expoente. Em síntese, pretende Jesus, com estas sugestões, que os seus discípulos inaugurem novas relações humanas e sociais.

A proposta do amor aos inimigos (vv. 43-46) parte da afirmação: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (v. 43). O amor ao próximo é proposto no AT (Lv 19, 17-18), mas este próximo “era definido através de uma série de círculos concêntricos que abraçavam a família, o clã, a tribo, o povo em Israel e na Diáspora hebraica. Fora destes círculos, estava o mal” (G. Ravasi, Secondo le Scritture, Anno A, ed. Piemme, 1992, p. 167), como o parece sugerir o Sl 139, 21-22: ‘Não hei-de eu, Senhor, odiar os que te odeiam? Não hei-de aborrecer os que se voltam contra ti? Odei-os com toda a minha alma, considero-os como meus inimigos”2.

Não estando o ódio ao inimigo textualmente prescrito, Jesus pretende corrigir, com o amor cristão, a aversão aos pecadores, os sentimentos contra os que não pertenciam à mesma comunidade de amigos (cfr. Sir 12, 4-7). Aponta então para a medida alta: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem” (v. 44). E acrescenta duas afirmações fundamentais: esta é a condição para os seus discípulos se tornarem filhos de Deus, pois é assim que Ele procede (o sol e a chuva são para todos [v. 45]); este é o sinal que os distingue dos cobradores de impostos e dos pagãos (vv. 46-47). Só esta forma de estar aproxima os discípulos da perfeição do Pai celeste, objetivo fundamental do Sermão da Montanha.

1 Ver algo parecido em Dt 25, 11-12. A aplicação da lei, em Israel, tendeu para a possibilidade de uma indeminização pecuniária e de curas médicas (cfr. Ex 21, 18-19), a não ser que se tratasse de homicídio (cfr. Nm 35, 33).

2 O Manual de Disciplina (literatura de Qumran) manda “odiar todos os filhos das trevas” (1QS 1, 10).


Autor: P. João Alberto Correia
DM

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13 fevereiro 2023