Um texto do cardeal Ravasi de 10 deste mês, com o título «Os cónegos», conta a história oferecida pelo teólogo francês Louis Bouyer: «Numa antiga catedral do Reino Unido, um venerável capítulo de cónegos estava concentrado a rezar a Liturgia das Horas. De súbito, rebenta um violento furacão. Os relâmpagos e os trovões sucedem-se com cada vez maior frequência. Um arrepio corre entre os cónegos. Então, o decano do capítulo, intensamente perturbado, faz um sinal com a mão e interpela os seus irmãos: 'Interrompamos o Ofício, irmãos, para rezar um instante'».
Sendo a Liturgia das Horas ou Breviário, depois da eucaristia, a oração da Igreja por excelência, a breve história dá conta da inconsciência com que se reza muitas vezes. Estando formalmente a rezar tão importante oração da Igreja, perante a adversidade, o decano do capítulo, interrompe para, supostamente, 'rezar um instante'. Então que estavam eles a fazer? Mas quem não se recorda de cónegos que, nas celebrações na Sé Primaz, rezavam o Breviário enquanto decorria a celebração da eucaristia? E em quantas igrejas de Portugal e do mundo inteiro, sobretudo até ao Vaticano II, se não rezou o terço durante a missa?
Mas, passados quase 60 anos da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, que atmosfera se palpa em muitas celebrações dominicais? Não parece mais que as pessoas estão ali, cansadas diante de Deus, chegando tarde e esperando que acabe depressa a missa? Não há ainda por aí, locais que atraem muitas pessoas, porque a missa dominical não ultrapassa escrupulosamente os 30 minutos? Será possível celebrar condignamente, de forma atractiva e provocando o assombro, a eucaristia dominical em tão curto espaço de tempo? Os 'fiéis' terão tempo de mover ao menos os lábios automaticamente?
As leituras serão proclamadas como deve ser? As orações não serão debitadas a correr, de forma que é impossível pensar e saborear o que se está a dizer? Diz Ravasi que tais atitudes podem entrar no aforisma evangélico interpretado de maneira enviezada: 'dar a Deus o que é de Deus', mas com a mesma pouca vontade com que se pagam os impostos a César. Isto é, sem paixão nem verdadeira adesão interior.
Se surge uma doença grave, uma preocupação séria, então a oração torna-se 'intensa e fremente', isto é, brota intensamente de um coração entregado. E é natural que assim aconteça. O próprio Saltério apresenta um terço das orações/salmos que são lamentos e súplicas de favores.
James Mallon, no livro «Una Renovación Divina: De una parroquia de mantenimiento a una parroquia misionera' apresenta o que ele denomina 'dez valores comuns às igrejas sadias em crescimento'. E o primeiro é, nada mais do que dar prioridade ao fim de semana, preparando convenientemente as celebrações dominicais.
Por uma razão elementar: onde encontramos 80% da gente é nas eucaristias do fim de semana E que tempo dedicamos a tal preparação? 20% do nosso tempo? Não deveria ser mais, dando o melhor de nós ao Senhor, para que cada aspecto da celebração seja devidamente cuidado, a fim de que a gente que vem à igreja possa sair com um sentimento de assombro, com vontade de permanecer mais tempo e voltar com mais vontade?
Infelizmente, como pastores, alimentamos muito uma cultura minimalista: fazer as coisas depressa e de qualquer maneira, para não aborrecer as pessoas. Mas esse modelo é o espelho de uma pastoral que tenta alimentar gente que não tem apetite. Ainda carregamos com uma tradição que marcava quais os pontos da missa em que o fiel devia estar presente para cumprir o preceito da missa dominical. Se o nosso compromisso for, como deve ser, dar prioridade ao fim de semana, procuraremos terminar com esta triste capitulação. O minimalismo e a conveniência não podem ser os valores prioritários de uma igreja sadia.
E que acontece com muitas das nossas festas ditas populares? Não deveria envergonhar-nos que se transmita música de uma brejeirice e ordinarice inqualificável? E o mais importante é a procissão ou a eucaristia e a preparação para ela? Celebra-se o sacramento da reconciliação? É mesmo uma festa religiosa ou uma cedência vergonhosa a uma cultura ambiente paganizante?
Conclui Ravasi o seu texto: «Por que não viver melhor a experiência livre e serena do louvor puro? Por que não permanecer mais vezes a celebrar Deus e a agradecer-lhe só por Ele existir e nós existirmos? Por que não conhecer o sabor íntimo do silêncio e da contemplação, do canto do coração e do abandono jubiloso em Deus, como menino nos braços da mãe?»
Autor: Carlos Nuno Vaz
Alimentar gente que não tem apetite ou tentar saciar pessoas que fiquem ainda com mais fome? (107)

DM
20 janeiro 2018