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Ainda sobre a eutanásia

1. Um indicador de que a discussão sobre a eutanásia foi sentida como um pesadelo para aqueles que se reclamam do significado da vida na cultura cristã e a vivem como um valor é a repetição de artigos que sobre este tema se têm publicado, como se tivessem necessidade de esconjurar essa mágoa e esclarecê-la para eventuais futuras decisões. Para o materialismo dialético da Esquerda radical a eutanásia representa uma atitude coerente com a sua filosofia política, pois não há mais nada para além da matéria, que funciona como um eterno retorno e a morte é o fim da linha do ciclo da vida; para a cultura humanista e maioritária do povo português, cujas raízes estão mais no interior do país, como dizia, há dias, José Luís Peixoto, a eutanásia representa uma agressão e uma rotura com os valores sagrados da vida: o povo português sempre acreditou no significado da morte como transição para uma vida futura, de acordo com a ressurreição de Jesus. Vários pontos separam, portanto, os que recusam e os que defendem a eutanásia: 1.1. A eutanásia agride os pilares da cultura humanista do povo e os seus valores de vida. Enquanto para o materialismo dialético só existe a matéria, para a cultura humanista há mais mundo para além da matéria, há toda a construção cultural que herdamos e que moldou a vida dos nossos antepassados, todo o mundo daquilo que nos transcende e interroga. Não se pode dizer que seja a questão religiosa, em si, que separa estas duas formas de pensar, mas sim a sua filosofia e valores de vida, pois enquanto o materialismo dialético considera a religião como uma alienação da realidade, a cultura humanista considera-a como um fenómeno natural e profundamente humano, pois é através dela que o homem procura respostas para aquilo que o transcende e inquieta, sobretudo o drama da morte e o além da morte. E esta procura religiosa do transcendente é tão antiga como o homem. 1.2. A natureza tende para conservação da vida, não para morte. É com base nessa tendência inscrita na natureza que funciona a medicina e a psicoterapia. Desde a reacção do feto que se contorce para se defender da agressão que o quer destruir, até ao mais vulgar mecanismo de reacção do organismo para se curar e se recompor psicologicamente, aí se manifesta a tendência natural e intencionalidade para a conservação da vida. Será, então, legítimo contrariar esta intencionalidade inscrita na natureza? 1.3. Ninguém é dono da sua vida. Para além dos adeptos do materialismo dialético em relação à eutanásia, há os que, na prática, consideram que cada um é dono da sua vida e pode decidir dela como quiser. Donde lhes pode vir a convicção de que são donos da sua vida? Não a criaram; não a receberam em herança; não a adquiriram a ninguém; apenas a usufruem nascendo vivos e mantendo-se vivos… Então, quando muito, são usufrutuários da vida. Não têm outro título de posse da sua vida. E como usufrutuários podem acabar com ela? Podem, mas sem legitimidade ética para o fazer. Também se pode roubar, mas sem legitimidade ética (e legal) para o fazer… Esta convicção de que são donos da vida denota duas coisas: ignorância da cultura (e mensagem) cristã pelo povo; para além das celebrações de culto, a acção da Igreja devia empenhar-se mais em promover a cultura humanista cristã ao povo. 1.4. Naturalmente, ninguém quer morrer. É a lei intencional da vida inscrita na natureza. Conheci uma senhora, já quase centenária, que vivia sozinha, mas era muito querida das vizinhas, que a ajudavam sempre que ela precisava. Um dia, as vizinhas estranharam não a ver e foram a casa dela ver o que se passava. Estava na cama. E disse-lhes que se sentia sem forças, mas esperava que daí a uns dias já tudo voltasse ao normal. Brincando com ela, uma das vizinhas, que tinha idade para ser sua filha, disse-lhe: deixe lá, dona F… se morrer, não tenha pena, porque já viveu muito... Quem me dera chegar à sua idade… Ao que ela respondeu prontamente, com a voz cansada: morre tu, morre tu… que eu não quero… Infelizmente, morreu, passados uns dias. Lembro-me também de um outro caso, mas esse pedia que o deixassem morrer porque queria “ir lá para cima”. Era um homem de forte personalidade, inteligente e de acção. E também de grande fé. Poucas horas antes de morrer e já com dificuldade, dizia: quero morrer, quero ir lá para cima… Não queria pôr fim à vida, mas, segundo a sua fé, passar depressa para outra vida melhor. O drama do sofrimento e da angústia da morte é sentir-se só, sem futuro para viver e sem nada poder fazer por si… Compreende-se que, nestas circunstâncias e quando já não há outra janela de esperança, surja o desejo de abreviar a vida para não sofrer mais… É numa situação destas que, para além dos cuidados médicos possíveis, uma atitude de amor pode fazer milagres no coração de quem sofre, porque o amor está para além de qualquer forma de religião e é sempre uma forma de teofania... Para além da tranquilidade que induz, pois o amor é o mais poderoso analgésico natural, sabe-se lá que milagres ele pode fazer...
Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

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17 junho 2018