A sociedade portuguesa, de há uns anos a esta parte, tem sido confrontada com temas ideologicamente fraturantes, como sejam as iniciativas legislativas levadas a cabo em torno do aborto, casamento (!) homossexual, barrigas de aluguer, eutanásia, suicídio assistido, entre outras questões polémicas. Os adeptos da despenalização de tais práticas proibidas por lei (constitucional ou penal) invocam, em geral, a liberdade individual do cidadão como fundamento do exercício de um direito que pertence à consciência da pessoa e não ao património ético-jurídico da sociedade. Nos debates parlamentares sobre estas questões, os partidos políticos costumam dar liberdade de voto aos seus deputados, por considerarem que tais assuntos são matéria de consciência privada, ativando, desta maneira, uma regra também tributária da liberdade individual em sede de direitos, deveres e garantias.
Como é público, a subversão do quadro legislativo que criminaliza o aborto, eutanásia e suicídio assistido tem tido por base uma argumentação centrada no conceito de dignidade humana, com diversos atores da cena mediático-política nacional a invocarem não só a dignidade de uma decisão pessoal (no caso do aborto), como o direito a uma morte digna (no caso da eutanásia e do suicídio assistido). Tudo o que tem sido dito e feito, dentro e fora do Parlamento, inscreve-se, porém, na instância cultural que resulta da atividade humana, seja ela de natureza filosófica, ética, jurídica ou política. Na verdade, o homem, ao longo de uma experiência histórica de milénios, adquiriu uma enorme capacidade de intervenção sobre a natureza, com a ajuda da imaginação, tecnologia e ciência. É normal que, agora, em tempos de deificação humana, se sinta dono da vida. Mas não é, como tentarei provar.
Antes da imaginação, tecnologia e ciência; antes dos princípios filosóficos, éticos, jurídicos, políticos; em suma, antes de qualquer princípio está o princípio natural que gerou a vida. Portanto, antes de tudo, a vida humana é um princípio natural, e só depois é que recebe, a posteriori, o contributo de outros princípios, que são sempre secundários. O único princípio primário participado pelo homem é a vida, tudo o resto é cultura. E se a vida está antes e depois do homem, é o homem que pertence à vida e não o contrário; logo a vida é um valor maior do que o homem. E sendo maior, o homem não tem poderes sobre ela, logo também não pode denegá-la com leis derivadas da sua consciência de ser pensante. Não há volta a dar a esta questão.
Se, per absurdum, as mulheres portuguesas decidissem praticar o aborto de forma massiva (dentro dos prazos que estão estabelecidos por lei) a nossa população morreria dentro da arcatura temporal de uma geração! Este argumento, apesar de retórico, serve para provar que toda e qualquer geração tem o dever de transmitir a vida, e nunca o direito de a impedir. Venha ela donde vier, da natureza ou de Deus, a vida é um valor inviolável e assim está consagrada na Constituição da República Portuguesa: “A vida humana é inviolável.” Porém, para muitos cidadãos, deputados, líderes de grupos humanos as leis valem o que lhes for deferido pelos novos padrões utilitaristas e tecnocráticos da política. Mas, aceitando este quadro mental, então a vida passa a coisa política que se pode tratar com o mesmo voluntarismo como se trata a reivindicação de um lóbi económico-financeiro.
Mas, se optarmos pela ideia da infrangibilidade da vida, então os argumentos da dignidade do aborto e da eutanásia caem por terra, pois a morte que atenta contra um princípio inviolável jamais pode ser digna. Logo, a interrupção técnica e artificial da vida de um ser que nasce naturalmente para morrer naturalmente é um processo que nunca deveria cair na esfera das possibilidades jurídico-políticas humanas. Doutra forma, é aceitarmos a transgressão cultural, quando não aceitamos a transgressão de Adão e Eva no Éden, numa aparente contradição epistemológica. Quer queiramos quer não, o homem é um transgressor que não só transgride o sagrado como também o natural. Mas será esse o caminho?
Erasmo de Roterdão, no Elogio da Loucura, já tinha denunciado este pecado do homem moderno: “Nenhum animal é mais calamitoso do que o homem, pela simples razão de que todos se contentam com os limites da sua natureza, ao passo que apenas o homem se obstina em ultrapassar os limites da sua.” Serão precisas mais palavras?
Autor: Fernando Pinheiro