O meu filho com 9 anos perguntou-me:
– Mãe, saudades é este buraco que dói aqui dentro junto do coração?
Respondi-lhe que sim.
E senti uma infinita pena da pena que ele estava a sentir. Isto é, eu sentia as saudades dele, sem saber do que tinha ele saudades. Porque não lhe perguntei. Só respondi à pergunta.
Violência é negar os sentimentos do outro. Violência é dizer ao outro: o que tu sentes está errado, é feio, é mau, é proibido. Violência é dizer ao outro: o que tu devias sentir é «isto» e « aquilo», porque esses são os sentimentos que eu aprovo.
Violência é dizer a uma criança: eu só gostarei de ti se tu fores bom e bonito. Bom e bonito como adjetivos dependentes da minha aprovação.
Violência é não confiar nos sentimentos do outro. É considerá-lo o objeto do meu Amor. O meu Objeto.
A coisa mais real do universo são os sentimentos: eu sinto, logo existo.
Violência é negar a Pessoa que existe potencialmente dentro da cada criança. Negar-lhe a validade dos sentimentos. E destruí-la.
Quando eu era pequena gostava de ir para a cama cedo e ficava confortável e quente a pensar nisto e naquilo. Coisas que tinham acontecido durante aquele mesmo dia, palavras que tinha ouvido, frases de livros que tinha lido e me faziam adivinhar sentidos ainda sem sentido.
Esperava que chegasse o meu chá de erva cidreira que a Maria trazia no tabuleiro. Ouvi-la fazer ranger os degraus da escada que subiam da cozinha até aos quartos, já me fazia rir. Não sei de onde me vinha o riso. Mas quando ela abria a porta do quarto e entrava, fazendo-se sorrateira e sorrindo, já eu estava torcida de gargalhadas. Ela perguntava:
–Mas que riso é esse? Por acaso fiz-lhe cócegas? Já sabe, a sua Avó havia de dizer...
E eu feliz terminava a frase: – Muito riso, pouco siso!
Aprendi então que o meu riso era bem vindo e que não tinha de justificar a minha alegria. Aprendi que “muito riso, pouco siso” convinha às pessoas grandes. Rir e estar triste eram faces da minha alma. Contei ao meu filho que também eu tinha saudades de lugares e pessoas desconhecidos.
Ele não ficou surpreendido.
Por analogia e em continuação linear vou escrever sobre ciência.
Um paradigma é um enquadramento. Uma moldura para o conhecimento numa dada época.
T.S.Kuhn, em 1962 definiu o conceito em relação ao conhecimento cientifico. Nas ciências há um conjunto de teorias, com técnicas e metodologias, que permitem enquadrar o investigador. A não utilização desse enquadramento é o que separa a ciência da não ciência.
Muitos dos licenciados e investigadores dos vários ramos da ciência trabalham dentro do paradigma de forma «tácita» (Polanyi), mas não seriam capazes de o enunciar. Utilizam as teorias, técnicas e metodologias com eficiência, mas não as interrogam.
Por vezes, em ciência, há fenómenos singulares para a interpretação dos quais a teoria se mostra incapaz de dar explicação. Então pode pôr-se a questão de ser necessária a mudança de paradigma, mudança da forma de olhar.
Por analogia volto aos sentimentos das crianças.
As crianças são investigadores do mundo que as rodeia. A família fornece-lhes um enquadramento: normas de conduta e de educação, noções de bem e de mal, atitudes, comportamentos. A criança aceita-as taticamente, porque a família representa para ela um mundo de segurança inquestionável. E assim constrói uma moldura, um enquadramento interno, um olhar.
Mas, o exercício da liberdade, como o exercício de ciência, pode deter-se no acontecimento singular, para o qual o enquadramento não dá respostas, nem certezas.
É o momento de cada um se questionar sobre o seu próprio paradigma: e é difícil construirmos os nossos próprios limites.
Não é por acaso que a Náusea de Sartre chega insidiosa e se impõe, quando temos de escolher, com a nossa única competência, e sem acordo tácito dos outros, os limites finitos para uma infinita liberdade.
Escolher pode significar a rutura do paradigma e o iniciar do processo de individuação.
A resposta que dei ao meu filho, quando ele tinha nove anos, poderá ter sido o início do processo de individuação dele.
Autor: Beatriz Lamas de Oliveira