Apolítica espanhola tem estado inflamada por causa de um problema algo caricato: o modo como foram obtidas as habilitações académicas de alguns governantes e de alguns dos seus opositores.
Acusada de ter plagiado uma boa parte do trabalho de fim de mestrado, a ministra da Saúde, Consumo e Bem-estar Social, Carmen Montón, demitiu-se na terça-feira passada. A saída está a provocar “uma enorme tensão”, noticiou o diário El País na quinta-feira na primeira página. A situação política, segundo o jornal, é agora de “todos contra todos”.
O líder do partido Cidadãos, Albert Rivera, aproveitou o impacto da demissão da ministra para semear dúvidas sobre a tese de doutoramento do presidente do governo. Pedro Sánchez “respondeu indignado” e o Partido Socialista Operário Espanhol “considera este ataque uma declaração de guerra”.
Enquanto ameaça com uma resposta mais contundente, o partido governamental insiste em pedir a demissão de Pablo Casado, o líder do Partido Popular, o principal partido da oposição, por problemas similares aos de Carmen Montón. As trapalhadas com as habilitações académicas, constantemente com novos episódios, não são um tópico inabitual em Espanha.
Nem, aliás, uma novidade na política europeia. Há alguns anos, um ministro da Defesa alemão ficou conhecido como o “barão Copy-Paste”. A origem nobre de Karl-Theodor Guttenberg justificava a ironia sobre a sua actividade de copiar e colar. Ela afigurava-se tão evidente que o diário Süddeutsche Zeitung disponibilizou no seu site um gráfico interactivo que permitia comparar a tese do ministro com os textos plagiados. Em Portugal, as dúvidas sobre o modo não propriamente ortodoxo como foram obtidos os canudos de alguns políticos – de José Sócrates ou de Miguel Relvas, por exemplo – suscitaram abundantes comentários, muitos deles jocosos.
O assunto seria risível se não se desse o caso de os pecados que estes comportamentos espelham serem um sintoma eloquente de uma devoção aos canudos, a raiar a superstição. “A religião do diploma” é como o jornalista François de Closets classifica a crença em A felicidade de aprender. E como ela é destruída (Lisboa: Terramar, 2002).
Perante o diploma, comportamo-nos como seus “leais súbditos”, não nos apercebendo do “papel central, ditatorial que desempenha na nossa sociedade”. O autor observa, para o exemplificar adequadamente, que “os que vencem na vida sem esse salvo-conduto são vistos como seres excepcionais, autênticas personagens romanescas”.
Notando que os media referem constantemente os nomes de autodidactas que, à parte o desporto e o show-biz, se tornaram célebres, o jornalista explica que “essa recorrência, ao acentuar o carácter excepcional do feito, reforça a existência de uma norma – vencer pelo diploma –, ao mesmo tempo que aponta a dedo as excepções a essa mesma norma”.
Dito de outro modo: “Essas excepções não funcionam como alternativa ao sistema vigente do diploma. Muito pelo contrário. Um pai que, posto perante o fracasso do seu filho, obrigado a sair da escola aos dezasseis anos, exclamasse: ‘Não faz mal. Marcel Bleustein-Blanchet ainda sabia menos quando saiu da escola, o que não o impediu de se tornar o patrão de Publicis!’ [a Wikipédia refere que a Publicis é uma das três maiores empresas de exploração de publicidade mundo]; um pai, pois, que tivesse essa reacção não estaria, de certeza, no seu perfeito juízo”.
A tirania do diploma, considerado como a única garantia de empregabilidade, dissemina-se de tal modo que fará com que, como escreve François de Closets, sem canudo, não seja possível “montar uma banca no mercado, vender gravatas porta a porta, carregar caixas num armazém, ser porteira ou mulher-a-dias”.
De facto, o canudo ocupa “o centro do sistema social, como o ‘Abre-te, Sésamo’ do emprego e barómetro da consideração social”. É por isso que, na Europa actual, “o artigo de fé mais difundido e mais convictamente partilhado é que ‘sem diploma, nada feito!’”.
O deplorável é que se tenha decidido combater “a falta de saídas profissionais promovendo (e prestigiando) estudos longos e de natureza não profissional”. Outra nefasta consequência, acrescenta François de Closets, é a formação ter sido preterida pela obtenção de um título. “O que sobra quando tudo o mais tiver sido esquecido não é a cultura, é o diploma”.
O que é novo em relação ao diagnóstico do jornalista é a circunstância de o canudo, num momento em que perdeu o poder mágico para assegurar um emprego, ter aumentado a relevância encantatória como reforço de um estatuto social e, pelos vistos, como chancela de qualificação política.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
A vida por um canudo
DM
16 setembro 2018