A Liturgia da Palavra do próximo Domingo (XIV do Tempo Comum) coloca-nos perante o envio dos setenta e dois discípulos (Lc 10, 1-12.17-20). Trata-se de um texto exclusivo de Lucas que nos fala da urgência e da exigência da missão, com uma densidade de sentido que importa desvelar e relevar.
Depois de ter especificado a missão dos Doze (9, 1-6), Jesus apresenta a missão dos 72 discípulos e envia-os dois a dois. É verdade que alguns códices falam de 70 e não de 72, mas trata-se apenas de uma oscilação numérica que também se encontra em Gn 10, onde se apresenta a lista dos 70 povos que Israel conhecia, por volta do séc. VIII a. C., nomeados pelos respetivos epónimos (personagens lendários colocados na origem de um povo). A versão grega, também ela associada ao número 70 (a “Bíblia dos Setenta”), elenca, nesta lista, 72 povos. Não é difícil descobrir o sentido: “os 72 (ou 70) discípulos tornam-se (...) o emblema da nova qualidade do povo de Deus composto de diversas nações, de múltiplas culturas e de diferentes estratos sociais” (Gianfranco Ravasi, Secondo le Scritture, Anno C, p. 219).
Também em Nm 11, 16-30, se fala de 70 homens, nomeados para partilhar com Moisés “o peso do povo” (v. 17). Lido a esta luz, o texto de Lucas poderá sugerir que “os discípulos de Cristo constituem a comunidade do novo êxodo, orientada para a terra prometida do Reino” (Gianfranco Ravasi, o. c., p. 219). Salta assim à vista um tema muito caro a Lucas: a Igreja é missionária e universal.
Também o facto de os discípulos serem enviados dois a dois tem a sua carga de sentido. Em Lc 7, 8, João Batista envia dois dos seus discípulos a Jesus; o próprio Jesus, já perto de Jerusalém, envia dois discípulos para lhe preparar o ingresso na cidade santa (Lc 19, 29). Além disso, são dois homens vestidos de branco que, no sepulcro, testemunham a ressurreição de Jesus (Lc 24, 4), enquanto que, nos outros evangelistas, se refere apenas um. O significado parece ser evidente: o testemunho duplo é garantia de verdade (cfr. Dt 17, 6); a fé cristã não é uma experiência intimista e estritamente pessoal, mas sim comunitária.
Do significado dos números, passamos à urgência e exigência da missão, destacando antes disso que, face à grandeza da messe e à escassez dos operários, a primeira condição que Jesus coloca não é a ação, mas a oração: “rogai ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe” (v. 2). Só depois é que envia (v. 3: “Ide. Envio-vos...”) e alerta para as dificuldades da missão: “... como cordeiros para o meio de lobos” (v. 3).
A missão dos 72 discípulos, tal como a de Jesus e a dos Doze, consiste em curar os doentes e anunciar que o Reino de Deus está próximo (cfr. v. 9).
Entre as exigências da missão, é relevado o desprendimento: “não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias” (v. 4). Devem os discípulos confiar naquele que envia e contar com a hospitalidade daqueles a quem são enviados: “Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa. Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido” (vv. 7-8)1. Se tal não acontecer, devem os discípulos sair à praça pública e, segundo o costume judaico, dizer: “‘Até o pó da vossa cidade, que se pegou aos nossos pés, sacudimos, para vo-lo deixar. No entanto, ficai sabendo que o Reino de Deus já chegou’” (v. 11).
A urgência da missão é dita também no v. 4: “não vos demoreis a saudar alguém pelo caminho”. Segundo os costumes orientais, tal exigia muito tempo (cfr. 2 Rs 4, 29), mas a missão é urgente. A verdadeira saudação é reservada aos destinatários da missão (v. 5: “A paz esteja nesta casa”) e condicionada pela sua qualidade: “Se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós” (v. 6).
O confronto entre as afirmações de Jesus e aquilo que hoje acontece leva-nos a concluir que, apesar das diferenças dos discípulos e dos destinatários, há muito a mudar no desempenho da missão que Jesus nos confiou.
1 “Nada pode deter ou impedir o prosseguimento do seu mandato: não a busca de uma hospedagem mais cómoda, nem os tabus alimentares, que impediam os judeus de frequentar ambientes pagãos, nem a rejeição ou oposição das pessoas” (R. Fabris, “O evangelho de Lucas”, in R. Fabris – B. Maggioni, Os Evangelhos (II), ed. Loyola, São Paulo, 1992, p. 122).
Autor: P. João Alberto Correia