Numa acepção muito ampla, de matriz antropológica, o vocábulo «cultura» designa a memória não genética da humanidade, ou seja, o conjunto de informações, de conhecimentos e de valores que o homem herdou, construiu, preservou, recriou e retransmitiu ao longo da sua história. À luz desta concepção holística da cultura, neutraliza-se a distinção entre cultura humanística e cultura científica, bem como a distinção entre cultura e civilização (uma distinção que tem subjacente um longo debate filosófico, político e social entre a concepção germânica de Kultur e o conceito francês de civilisation).
Quando, porém, uma Universidade se define como uma instituição criadora, transmissora e difusora da cultura, da ciência e da tecnologia, convoca-se obviamente um conceito de cultura mais restrito do que o referido conceito de matriz antropológica. Quando os Governos dos países ocidentais, a partir dos anos cinquenta do século XX, começaram a criar Ministérios da Cultura, com finalidades e competências diferentes em relação aos Ministérios da Educação e aos Ministérios da Ciência, o conceito de cultura em causa compreendia predominantemente, senão exclusivamente, os fenómenos da produção, da oferta e do consumo de bens culturais que vão do livro e da música ao teatro e ao cinema, bem como a preservação da memória comunitária em instituições adequadas (bibliotecas, arquivos, museus).
Este conceito mais restrito e mais específico de cultura privilegia indubitavelmente as áreas das artes, quer na vertente da produção, quer na vertente do consumo e da fruição e abarca tanto as manifestações da chamada «alta cultura» como as manifestações da chamada «cultura de massas».
Pode-se afirmar que a criação dos Ministérios da Cultura e dos Ministérios da Ciência consumou, a nível das instituições do Estado, a diferenciação, que se vinha a verificar na Europa desde o século XVIII, entre a cultura humanística e artística, por um lado, e a cultura científica e tecnológica, por outro. Este processo de diferenciação evoluiu muitas vezes no sentido da separação e mesmo do conflito e originou também, algumas vezes, aproximações e diálogos de grande força criadora.
A Universidade contemporânea tem sido e será um espaço fundamental do diálogo e do litígio das duas culturas, para fazer um apelo ao título do célebre opúsculo de C.P.Snow (The two Cultures: and a second look, Cambridge University Press, 1969). Como centro de investigação e de ensino, a Universidade contemporânea concedeu naturalmente à ciência e à tecnologia um lugar fundamental e desenvolveu, a partir das disciplinas humanísticas tradicionais, as chamadas ciências humanas e sociais.
Todavia, muitas universidades acolheram e acolhem, como Faculdades, Escolas, Institutos ou Departamentos, o ensino de artes em sentido restrito: o ensino da música, o ensino da escrita literária, o ensino da pintura e da escultura, o ensino do teatro e do cinema, etc. Por outro lado – e este para mim é um vector fundamental desta problemática –, a Universidade contemporânea tomou consciência de que a sua função educativa e social, na medida em que contribui para formar mulheres e homens livres, responsáveis, participativos na vida comunitária e cidadãos do mundo, com um desenvolvimento harmonioso das suas capacidades cognitivas, da sua sensibilidade, do seu imaginário, das suas aptidões poiéticas e das suas dimensões éticas, não se podia confinar à criação e à transmissão do conhecimento científico stricto sensu. E daí que as Universidades contemporâneas tenham investido grandes somas de dinheiro – nos Estados Unidos da América beneficiando muitas vezes de generosos apoios mecenáticos – na criação de museus e bibliotecas, que podem também servir o ensino e a investigação, mas que têm de raiz uma função cultural muito alargada, que promovam e incentivem a realização de festivais de teatro e de cinema, de concertos musicais, de exposições de pintura, etc.
O autor não escreve segundo o chamado «acordo ortográfico»
Autor: Vítor Aguiar e Silva