No discurso de 13 de Janeiro a uma delegação do Movimento da Acção Católica Francesa, o Papa Francisco desenvolveu a intuição que lhes deixou uma das grandes figuras da Acção Católica, o padre Cardijn, precisamente «a revisão de vida».
Partindo do tema escolhido para a peregrinação a Roma: «Ser Apóstolos, hoje», Francisco apela ao exemplo dos discípulos de Emaús, que começam precisamente por recordar os acontecimentos que tinham vivido; depois, reconhecem a presença de Deus naqueles acontecimentos; e, por fim, agem, voltando a Jerusalém para anunciar a ressurreição de Cristo. São 3 acções que correspondem bem ao lema de vida dos membros da acção católica: ver, julgar, agir».
A primeira etapa: ver, é basilar: «consiste em parar a observar os acontecimentos que formam a nossa vida, aquilo que constitui a nossa história, as nossas raízes familiares, culturais, cristãs». É uma pedagogia que começa sempre com um momento de memória, no sentido forte do termo: «uma anamnese», isto é, compreender a partir da experiência vivida, aquilo que se é e aquilo que foi vivido; perceber como Deus estava presente em cada instante. A finura e delicadeza da acção do Senhor na nossa vida impede-nos, por vezes, de a compreender no momento, e é necessária esta distância para lhe captar a coerência». A encíclica Fratelli tutti começa precisamente com um olhar sobre a situação, por vezes preocupante, do nosso mundo. Pode parecer um pouco pessimista, mas é necessário esse olhar para ir avante. Como se refere no nº 249: «Sem memória, jamais se avança. Não se cresce sem uma memória íntegra e luminosa».
Na segunda etapa, temos o julgar, que também se pode verter por discernir. É o momento em que nos deixamos interrogar, nos colocamos em discussão. E a chave desta etapa está na referência à Sagrada Escritura. É preciso aceitar que a própria vida passe pelo crivo da Palavra de Deus que: ‘é viva, eficaz e mais penetrante que espada de dois gumes; […] ela discerne os sentimentos e os pensamentos do coração’ (Hb 4,12). No encontro entre os acontecimentos do mundo e a nossa vida, de um lado, e a Palavra de Deus, do outro, podemos discernir os apelos que o Senhor nos dirige.
Francisco lembra que a Acção Católica tem uma prática sinodal muito antiga, sobretudo na vida dos grupos. Hoje, a Igreja no seu conjunto está lançada num processo sinodal. «Recordemos que a sinodalidade não é uma simples discussão. Não é um ‘adjectivo’. Jamais adjectivemos aquilo que é a substancialidade da vida. A sinodalidade não é também a busca do consenso da maioria. Isto faz-se no parlamento. A sinodalidade não é um plano, um programa a pôr em acção». Não. «É, sim, um estilo a assumir, cujo protagonista principal é o Espírito Santo, que se exprime sobretudo na Palavra de Deus, lida, meditada, partilhada em conjunto». E, neste ponto, Francisco desafia-nos: «Tomemos a imagem concreta da cruz: tem um braço vertical e um braço horizontal. O braço horizontal é a nossa vida, a nossa história, a nossa humanidade. O braço vertical é o Senhor que nos vem visitar com a sua Palavra e o seu Espírito, para dar sentido àquilo que vivemos: ser cravados na Cruz de Cristo (Gal 2, 19) , aceitar colocar a minha vida sob o seu olhar, aceitar este encontro entre a minha pobre humanidade e a sua divindade transformante». Por isso, é preciso reservar um lugar importante à Palavra de Deus na vida dos grupos. E é preciso dar lugar também à oração, à interioridade, à adoração.
Agir é a terceira palavra, mas só tem sentido se a iniciativa for sempre de Deus: «O Senhor agia juntamente com os Apóstolos e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Mc 16,20). É o Senhor quem tem a exclusiva do agir, caminhando como incógnito na história que habitamos. Daí que o nosso papel seja sustentar e favorecer a acção de Deus nos corações, adaptando-nos à realidade em constante transformação. As pessoas, sobretudo os jovens, não são como há alguns anos. Sobretudo na Europa, são mais cépticos em relação às instituições, procuram relações menos empenhativas e mais efémeras. São mais sensíveis à afectividade, e, por isso mesmo, mais vulneráveis, mais frágeis que as gerações precedentes; menos enraizados na fé, mas, todavia, em busca de sentido e de verdade; e não menos generosos. É nossa missão abordá-los assim como são, fazendo-os crescer no amor a Deus e ao próximo, conduzindo-os a um maior empenhamento concreto, que os faça protagonistas da sua vida e da vida da Igreja, para que o mundo possa realmente mudar.
Autor: Carlos Nuno Vaz
A sinodalidade não é uma simples discussão

DM
22 janeiro 2022