Ganhei um torcicolo de tanto girar a cabeça em todos os sentidos. Olhava para um lado e via banqueiros que roubaram os clientes, alguns que tinham depositado as poupanças de uma vida; olhava para outro e via futebolistas a combinar resultados de jogos, viciando as apostas desportivas, dirigentes a ficarem com o dinheiro dos contratos e a incentivar adeptos fervorosos e claques ao desforço pela força; olhava para acolá e via ciclistas de fama mundial a declararem que se dopavam para atingir as vitórias; virava a cabeça e via políticos a ganhar ajudas de custo indevidas, a terem lapsos de memória quanto aos seus rendimentos, a declararem moradas falsas, a dizerem-se doutores onde nem sequer tinham licenciatura; olhava para ex-ministros e via-os envolvidos em situações menos claras, em negociatas e tráfico de influências; virava para outros sítios e via bancários a copiarem as práticas dos banqueiros, apropriando-se de depósitos em proveito próprio. Olhava com estranheza para a justiça e via juízes a mentirem em tribunal, outros a serem incriminados por violência doméstica, padres a trair os seus votos, professores a venderem provas de exame, CEOS a gerirem objetivos empresariais em proveito próprio! Daria muito para os não ver ou, pelo menos, para me furtar a vê-los, porque queria preservar intactos os pilares de minhas referências de infância, as que alicerçaram a conduta duma geração; as mesmas onde viveram esses valores que agora de desfazem em espuma de encontro às rochas do relativismo; fiquei a sofrer de uma dor de pescoço, fiquei com um torcicolo. Quis parar de ver, mas, a cada dia que passava, lá vinham outros a engrossar este caudal maldito: os que matavam, os que esfaqueavam, os que exerciam violência doméstica, os pedófilos, os filhos que batiam ou matavam os pais, os pais que abusavam das filhinhas, mães que colocavam no mercado do sexo as filhas menores! Haverá crime maior do que fazem estes animais a que chamo reprodutores de sémen porque me recuso chamar-lhes pais? Olho e volto a olhar à procura de um sítio, de um lugar, nem que seja uma nesga, um pequeno lugar, um ponto por minguado que seja onde possa encontrar um descanso para este pescoço dolorido de tanto torcer; uma almofada fofa onde possa repousar, ainda que por instantes, num mundo onde não haja tanta coisa suja. Olhei para cima à procura de piedade e pareceu-me ouvir, trazido pela brisa ligeira de uma primavera qualquer, uma voz, qual ciar de ave , que me dizia: não posso ajudar quem não se ajuda a si mesmo. Era a voz do meu catecismo de criança que me voltava dos longes da infância, que me falava e esclarecia que estas entidades são as que medram no nosso prado, dantes viçoso, indiferentes ao lodo que o invade. E são tão sábios estes senhores e tão estudados estes prevaricadores! Geração muito sábia, muito estudada. Quem não alia a sabedoria à virtude não se faz humano. Faz-se máquina. Ser humano é juntar a sabedoria à virtude. O encanto diabolicamente sedutor da cobiça é uma prova de que existe, para estes senhores, um discurso apenas na primeira pessoa dum relativismo que é mais do que livre arbítrio. É uma carência de formação holística de base. São ensinados para vencer, a olhar para os fins sem olhar a meios, são os que só sabem conjugar interesses na primeira pessoa. Só de um lado como moeda sem anverso. Há, pois, uma nova educação a fazer: educar para a sageza. Sinto profundamente que este é o caminho. Eles rir-se-ão destes ideais. Quem se ri de ideais? Os insaciáveis.
Autor: Paulo Fafe
A sageza
DM
4 junho 2018