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A Ressurreição de Cristo

Cristo na cruz. Apenas quando morreram as testemunhas das crucificações e os que as escutaram e os que, a seguir, souberam de uma impressão ainda pungente de uma tão bárbara condenação à morte – apenas, portanto, quando se foi desvanecendo a imagem concreta de um homem numa cruz – surgiu a representação de Jesus crucificado. Desde então, ao longo dos séculos, a História da Arte foi recolhendo obras inesquecíveis sobre esse momento que marca radicalmente a vida dos cristãos. Também a descida do corpo da cruz foi tema de incontáveis pinturas. Muitos são os livros que documentam adequadamente como ao longo dos séculos os maiores artistas plásticos olharam a crucificação e o momento seguinte, imaginando como teria sido esse tempo de sofrimento redentor. A Ressurreição, em contrapartida, foi muito menos inspiradora e, de entre todos os artistas que a retrataram numa tela, talvez o maior seja Piero della Francesca. O advérbio talvez é uma precaução desnecessária. A Ressurreição[1], afirmou o escritor Aldous Huxley, é “a melhor pintura do mundo”. Sendo-o ou não, é esta a pintura que melhor configura o imaginário da Ressurreição. A obra-prima de Piero della Francesca não tem uma datação precisa, mas os especialistas julgam que poderá ter sido realizada entre 1450 e 1465 numa parede que foi destacada e instalada no Palazzo del Governo em Borgo Sansepolcro, em Arezzo. Em 1944, durante a II Guerra Mundial, um jovem oficial britânico, Anthony Clarke[2], que tinha sido incumbido de bombardear a cidade italiana que se supunha estar repleta de nazis, tendo lido as páginas de Along the road, notes and essays of a tourist (1922) em que Aldous Huxley justifica o singular encómio de “a melhor pintura do mundo”, decide desobedecer às ordens que recebera de modo a poupar Sansepolcro e a Ressurreição. Numerosos foram, ao longo dos séculos, os pintores que nas suas obras acompanharam Jesus Cristo, detendo-se num ou noutro ou em muitos episódios da sua vida, de modo que ela pode hoje ser detalhadamente recordada através da História da Arte. Jesus. A Sua vida narrada pelos artistas plásticos[3] é um exemplo que, de algum modo, o comprova. Com selecção de obras de Pierre Belvès e Jean Lhuen e comentários do Padre Florent, sendo a versão portuguesa da responsabilidade dos jesuítas João Mendes e Alves Pires, o livro apresenta o fresco de Piero della Francesca quando é chegado o momento de dar conta do acontecimento de Domingo de Páscoa. O actor Michael Lonsdale, que já foi, por exemplo, vilão em 007 e abade em O Nome da Rosa e que trabalhou com, entre outros, Samuel Beckett, Marguerite Duras ou Orson Welles, é o autor do magnífico Jésus, lumière de vie. Mon évangile des peintres[4], uma vida de Jesus ilustrada pelos maiores pintores. Afirma Michael Lonsdale que, tendo lido muito os evangelhos, também os contemplou longamente graças às pinturas assaz eloquentes dos mestres. As que o “evangelho dos pintores” recolhe “são amigos” que o actor revê com a secreta conivência que o tempo teceu entre ele e as obras. “Se se pode afirmar que cada um tem ‘o seu’ Cristo, o meu foi construído graças ao de outros: ele é proveniente do talento e do fabuloso olhar dos grandes artistas que tão bem souberam reproduzir as cores da graça”. A cada obra pictórica sobre a vida de Jesus está associada uma referência à passagem dos evangelhos que a inspirou e um comentário de Michael Lonsdale. Sem surpresa, Piero della Francesca é o pintor conveniente para evocar a Ressurreição: “Perguntei-me sempre a que se assemelharia o corpo de Cristo depois da Ressurreição, que apareceu aos apóstolos e depois desapareceu. Aqui o genial Piero della Francesca responde claramente: é o verdadeiro corpo de Cristo que saiu do túmulo”. Nesta pintura sobre o que é qualificado como “o maior acontecimento da História”, Michael Lonsdale manifesta-se também sensível ao olhar de Cristo. Lembra que Albert Camus também o tinha sido, “tocado pela ‘resolução de viver’ que dele emana”. Michael Lonsdale confessa que pode contemplar demoradamente estes olhos, que viram o que todos poderemos ver: “a passagem da morte ao renascimento no amor”. Boa Páscoa. Com todas as cautelas que o combate à pandemia impõe. [1] www.museocivicosansepolcro.it/en/opere/piero-della-francesca/resurrezione [2] C'era una volta al borgo: Anthony Clarke, l'uomo che salvò la Resurrezione – https://www.youtube.com/watch?v=7iThJi-duko [3] Lisboa: Verbo, 1985 [4] Paris: Philippe Rey, 2014
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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12 abril 2020