twitter

A prática da condecoração

Por exemplo: comete um ato heroico o soldado que, na frente de batalha, cresce contra o inimigo, com coragem, determinação, de peito aberto, afastando, assim, o perigo, resultante de um ataque iminente, para si e seus camaradas; ou o bombeiro que enfrenta o furor das chamas para resgatar alguém que, por elas cercado, já não tem possibilidades de salvação; ou, ainda o nadador-salvador que se lança ao mar revolto, em fúria e salva o banhista exausto e sem forças para sair das águas. 

Todavia, a prática da condecoração tornou-se tão banal e comezinha que, qualquer dia, já não há portugueses para medalhar; ou, então, voltamos aos tempos de uma certa Monarquia em que a prática da atribuição de títulos se tornou tão corriqueira que se proclamava: foge cão que te fazem barão. 

E, então, desde que a política passou a dominar a vida pública nacional, a atribuição de medalhas de mérito por antiguidade de serviços prestados, mais se trivializou, a ponto de se medalhar cidadãos que acabam por cair nas malhas da Justiça e, consequentemente, no descrédito e desprezo públicos; e, logicamente, na desilusão e cara de pau de quem lhes atribuiu a distinção honrosa. 

Mas, assim sendo, o que verdadeiramente me confrange é nunca assistir à condecoração, por exemplo, de um cavador que, de sol a sol, luta para arrancar da terra o sustento para si e para os seus; ou de um mineiro que, uma vida inteira, enfrenta nas minas a solidão, o perigo constante e o medo para ganhar a vida; ou, ainda, de uma dona de casa que diariamente se esfalfa para pôr na mesa o sustento para si e para os seus. 

Ora, a condecoração oficial tem sempre origem e concretização na vontade do presidente da República; e tem, como data óbvia de atribuição, o 10 de Junho – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, embora alguns presidentes tenham furado este protocolo e atribuem condecorações em datas sem significado institucional; ou seja, fazem-no quando muito bem lhes apetece ou acham que é oportuno. 

Agora, ao longo dos tempos, os presidentes da República têm feito da condecoração, não direi um modo de vida, mas uma prática irrisória e inflacionada; por exemplo, os presidentes eleitos desde o 25 de Abril foram pródigos, muito pródigos no número de condecorações atribuídas. Ora, vejamos: segundo as minhas contas, Ramalho Eanes atribuiu 2007 condecorações, Mário Soares, mais esbanjador, 2505, Jorge Sampaio, 2374 e Cavaco Silva, mais comedido, 1230; mas, estou em crer que o atual presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, se mantiver o ritmo que já leva e apoiado na prática dos afetos, seguramente, no fim do seu mandato, vai bater toda a concorrência. 

O que me leva a repetir o que aqui já afirmei, e dizer com o poeta: 

Condecoro o presidente 

E sabem por que razão?

Porque deu tanta gente

Tanta condecoração!

Ou, ainda, cantar com Rui Veloso: 

Quem és tu, de onde vens?

Conta-me lá os teus feitos

Que nunca vi Pátria assim

Pequena e com tantos peitos. 

Já chegou o dez de junho,

O dia da minha raça. 

Tocam cornetas na rua

Brilham medalhas na praça. 

Então, até de hoje a oito.

 

Autor: Dinis Salgado
DM

DM

7 junho 2017