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A polaridade da presença de Jesus na Igreja de hoje

1. O tradicional formato arquitectónico rectangular dos templos, com o corpo do edifício, o transepto (em cruz) e ao cimo o altar e trono, é uma forma de representar a vida e morte de Jesus marcada pelo arquétipo da cultura monárquica. Exprime também a obediência e o silêncio do povo diante do poder de quem preside no patamar do altar. O ponto de polaridade é o presidente e não o encontro dos que acreditam na promessa de Jesus que disse “onde dois ou mais se reúnam em meu nome Eu estarei no meio de vós” (Mt 18,20). Nisso, a nova igreja de Fátima foi construída de paradigmática (esperemos que funcionalmente a não alterem), representando o encontro dos discípulos que ali acorrem, acolhidos pela figura de Maria, seja qual for a porta do apóstolo por onde entrem: tudo confluiu para o encontro na mesa da Ceia do Senhor, onde juntos comemoram e celebram a construção do Povo de Deus, porque Jesus está no meio deles… com o líder da comunidade desempenhando o serviço de animar e orientar. Serviço, não poder. Caminharem juntos, em sinodalidade. Esta nova polaridade gera uma nova consciência de si e do grupo. Quer dizer que o templo de hoje deverá ser funcionalmente um lugar de encontro que predispõe para o diálogo, a corresponsabilidade, uma nova forma de caminhar na vida que se vai construindo…

2. Esta nova consciência de grupo implica também um novo de modo de acção, em termos institucionais, uma mudança de consciência pessoal e de estatuto. Uma nova liturgia de grupo e de acção. Faz-me lembrar a mudança que implicou a passagem da teoria ptolomaica (acreditava-se que era o Sol que girava à volta da Terra) para a descoberta coperniciana, no tempo de Galileu (a Terra é que gira à volta do Sol). Nessa altura, houve resistências a isso. E levou 200 anos a ser assumida… Não me admira que, hoje, haja também resistência passiva para as mudanças que a sinodalidade implica. Cristina Inogês-Sanz, teóloga nomeada pelo Papa para integrar a Comissão Metodológica do Sínodo dos Bispos convocado pelo Papa, numa entrevista à revista FAMÍLIA CRISTÃ, afirmou que “as primeiras estruturas que há que cuidar e mudar são os seminários e as paróquias, porque estão institucionalmente na origem de tudo. Se isso não se muda, será muito difícil seguir adiante. Estamos num momento crucial, porque a situação da Igreja é o que é e não é boa. O primeiro passo para resolver um problema é reconhecer que ele existe. E o problema é a existência de uma estrutura rígida, vertical, clericalizada ao máximo, não só por parte do clero, mas também por parte do laicado, que não soube viver de outra maneira e que reproduziu o que viveu”. A respeito de laicado, Cristina Inogês-Sanz esqueceu-se de dizer que a divisão dos cristãos em clero e leigos equivale a uma teoria de casta que não tem qualquer fundamento histórico-cristão nem é aceitável nos tempos de hoje. Desempenhar tarefas de liderança no grupo é uma coisa, desempenhá-las por ser um ente metafísico especial no grupo, com poderes especiais, é outra...

2.1. Relativamente aos seminários, a mentalidade do nosso tempo antecipou-se e foi-se encarregando de os ir fechando, por falta de candidatos. Porquê? Porque cada tempo tem os seus problemas e as soluções mais adequadas para eles. Houve tempo em que essa solução era aceite e tida como boa; hoje, não é… Ignorar essa realidade é recusar ver e entender os sinais dos tempos. É preciso procurar novas soluções para os novos tempos, nomeadamente em relação à mentalidade centralista clerical e ao tabu da sexualidade, que a ciência vem demonstrando que, de tema maldito, passou a ser socialmente tema de riqueza de humanidade associada ao amor, ao convívio, à ternura, ao afecto, à amizade, à corresponsabilidade. A comunidade e especialistas devem ser ouvidos acerca disso, porque esta mudança implica novos modos de pensar a vida e a acção; mas que pode ser uma mudança de grande riqueza para a sociedade.

2.2. Quanto à paróquia, cuja concepção e funcionamento assenta no tradicional produto dos seminários, precisa também de ser reflectida, não pode continuar a ser apenas um lugar de organização clericalizada, com um templo arquitectonicamente desenhado para local de rituais sacrificiais em vez de espaço de encontro de grupos inseridos no grande grupo que se reúne semanalmente para comemorar a Ceia do Senhor, celebrada por todos os discípulos de Jesus aí reunidos. Nem pode continuar a ser um mero local de “distribuição de sacramentos” onde a partilha da Palavra na celebração, no diálogo e no processo de conversão são irrelevantes. Precisa de ser funcionalmente um local de encontro e de diaconia, de interajuda e solidariedade. O altar como “lugar do sacrifício”, com a pedra de ara por onde escorria o sangue da vítima (expressões culturais anacrónicas e bárbaras de outros tempos) deve dar lugar à mesa da celebração da amizade em comemoração da Ceia de Jesus. Como não há culto de sacrifícios, não faz sentido haver figura dd sacerdote sacrificador da vítima para oferecer ao deus irritado pelos pecados dos homens (este deus não condiz com o Deus de jesus Cristo, que é Pai). O que faz sentido é o encontro que reúne o Povo de Deus para comemorar a Ceia do Senhor, baseado na amizade entre os irmãos e no louvor da fé. É o processo em actualização. “Lumen Gentium”.

Feliz Ano Novo!


Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

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3 janeiro 2022