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A pobreza da riqueza

Conheci em tempos idos um homem que emprestava dinheiro a juros a quem, por qualquer circunstância da vida, necessitava dele para pagar remédios, operações, penso para o gado e outras coisas que o acaso obrigava a despesas extra. Ganhava a vida na usura da necessidade alheia. Era um “banco” rural de último recurso e ele era um “banqueiro” conhecido pelas redondezas. Verdade se diga que não era preciso papelada, bastava “o banqueiro” saber que tinha bens que respondessem pela dívida que logo o dinheiro saía da caixa das sementes e aparecia na mão do necessitado. Era rico mas comportava-se como pobre. Um dia vi-o na cidade de Braga com umas botifarras rotas e sem meias. Havia quem dissesse que dormia numa enxerga de palha para não gastar dinheiro em lençóis. Lá diz o ditado: o pobre não tem, o avarento nunca terá. O dinheiro para este homem rico, que vivia como pobre, tornara-se-lhe um hábito e uma obsessão. A casa, disseram-me, há muito caía aos bocados, mostrando uma urgente beneficiação; havia quem julgasse que de um dia para a noite o teto acabaria por desabar e matá-lo. Mas tinha dinheiro a juros e um montão dele parado à espera de novo necessitado. Este homem existiu de verdade, não é filho de criação literária. Quando oiço falar a respeito do sr. ministro das finanças de Portugal e da sua política de cativações orçamentais, e de saber como tudo está na penúria, vem-me logo à ideia este homem sem meias e botas rotas. Porque também temos um serviço de saúde a desfazer-se aos bocados, as obras públicas paradas, nos hospitais faltam médicos em quase todas as especialidades, não há enfermeiros que cheguem para quase nada, há falta de material de consumo nos bancos hospitalares, os remédios mais eficientes não se compram, os corredores dos hospitais são enfermarias, os cuidados continuados dão agora os primeiros passos, os comboios estão parados por falta de assistência e renovação, os militares e paramilitares protestam, os professores reclamam, todos os grupos laborais clamam por melhores carreiras. É um nunca mais acabar de “botas rotas”. A casa-estado está a cair por falta de financiamento, mas há dinheiro nos cofres do estado e nunca falta dinheiro para emprestar a bancos falidos, nem nunca faltam dinheiros para pagamentos antecipados. Um dia o teto cai-nos em cima, mas temos dinheiro no cofre do erário público. O povo vive pobre mas o estado é rico. Esta analogia entre o pobre/rico da aldeia que emprestava a juros especulativos e Mário Centeno, não me parece muito despropositada. As semelhanças são evidentes; talvez haja pormenores onde se notam alguns afastamentos; por exemplo, o pobre/rico daquela aldeia só explorava quem o procurava e Mário Centeno “explora” sem que o procurem. Construiu um prestígio internacional dando a côdea rapada aos portugueses. O que é mais irónico nisto é que há portugueses que cuidam que estão a comer miolo! Mas se há divergência como esta, também há coincidências de princípios: ambos se igualam na obsessão pelo dinheiro em caixa. São conceções de vida que assentam no pressuposto de que o entesouramento é uma garantia de futuro. E é, e está certo; não advogamos o princípio de pataca-ganha-pataca-gasta, mas antes que o amanhã chegue, é preciso viver o hoje. A responsabilidade política é não deixar que nisto não haja dilemas. Se, como pai, deixasse os filhos andar de botas rotas e sem meias ou a viver em enxergas até era capaz de ter uns dinheiritos no banco. Centeno é real e não filho de criação literária.


Autor: Paulo Fafe
DM

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22 julho 2019